«Realmente o Senhor faz os cegos verem. Os nossos olhos, irmãos, são agora iluminados pelo colírio da fé. Para restituir a vista ao cego de nascença, o Senhor começou por ungir-lhe os olhos com sua saliva misturada com terra. Ele misturou sua saliva com a terra: E a Palavra se fez carne e habitou entre nós».
(Jo 1,14 – Santo Agostinho, Tract. 8-9).
Essa palavra de Santo Agostinho é muito
apropriada para iniciarmos o tempo do Advento, no qual esperamos a vinda
do Senhor em Belém e sua vinda gloriosa no final dos tempos. É tempo
para purificarmos nossa visão, limpar nossos olhos com o colírio da fé a
fim de sermos capazes de discernir entre o olhar do mundo e o olhar de
Deus.
O olhar segundo o mundo nos priva da
liberdade e da subjetividade, pois nos quer como multidão arrastada pela
moda, pelo consumismo, pelo prazer. Quanto menos vivermos a liberdade
dos filhos de Deus mais seremos vítimas dos arrastões de comportamento
que nos levam ao individualismo, proposto como verdadeira inteligência:
“eu gosto, então é verdade”.
A vida em comunidade, que é comunhão de
pessoas, permite-nos olhar a história pessoal e do mundo de forma
solidária: “é bom para meus irmãos e para mim, então é caminho de
verdade”. Dessa forma, eu não sou ameaça a ninguém, nem sou ameaçado por
alguém, não sou “vaquinha de presépio”, mas pessoa em diálogo com
pessoas.
O colírio da fé, necessário no Advento,
abre nossos olhos para contemplarmos o olhar divino sobre a história:
Deus, ele sim, o Criador e Pai, oferece-nos a palavra que gera
comunidades: o amor que se multiplica no amor fraterno, materno, filial,
esponsal, nunca um pervertido amor interesseiro cuja origem e destino
são o meu egoísmo.
O mundo faz o ego agigantar-se, e se
gloria disso, enquanto que o amor faz-me pequeno para que possa crescer
com todos, partindo dos mais frágeis, numa felicidade que é gerada no
sentir minha capacidade de ver o outro a partir de Deus, da comunhão de
vida.
Os meios de comunicação são pródigos em
apresentar e propagar os egos de artistas, de pretensos intelectuais,
como modelos de vida e de comportamento, a oferecerem respostas para
tudo em meio a um balé executado ao som de cretinices e pseudo-soluções.
Quanto mais escandalosa a resposta, mais animado o bailado. Apresentam
resultados de pesquisas como se fossem revelações divinas, numa moda
traiçoeira que leva os ingênuos a julgarem que, se a maioria aprova,
então está certo. Os dogmas da fé são apresentados como frutos do
passado ingênuo e são substituídos por outros dogmas, bem mais
exigentes, porque nos colocam na moda: os dogmas das estatísticas, das
pesquisas.
O dado matemático suplantou o dado
revelado. Deus é excluído da vida e, como não se vive sem algum deus,
seu lugar foi ocupado pelo deus do palpite, do vazio interior. Não o
Deus que se revela na História humana e cósmica, mas o deus dos prazeres
que duram pouco mais que um dia e logo dão lugar a outros. Hoje como
ontem: no lugar de Deus que o libertara da escravidão do Egito, o povo
de Israel adorou um bezerro feito de ouro. E cantou e se divertiu e
blasfemou, esquecendo de olhar as serpentes venenosas que se aproximavam
para picá-lo (cf. Êxodo 32, 1-35; Números 21, 4-9). A beleza da
serpente escondia seu veneno.
A Palavra de se fez carne
Para curar o cego de nascença, Senhor
começou por ungir-lhe os olhos com sua saliva misturada com terra,
explicou Agostinho. Ele misturou sua saliva com a terra: para que a
cegueira fosse vencida, o Senhor uniu a divindade com a humanidade e,
desse modo, o homem recupera a luz de seus olhos unindo a terra ao céu, o
divino ao humano e, foi para isso que a Palavra se fez carne e habitou
entre nós, para recuperar nossa imagem e semelhança, criando a comunhão
Deus-Terra-Homem.
O tempo do Advento é o tempo da memória,
tempo da invocação, tempo da espera do Senhor. Memória do que o Senhor
realiza pela nossa salvação, invocação para que venha em nós e em toda a
criação, espera feliz de sua chegada hoje e na consumação dos tempos,
quando virá cheio de glória para julgar os vivos e os mortos.
Não devemos achar que o mundo está bom,
que nossa vida já é boa o suficiente. Queremos muito mais, porque o
Senhor oferece bens muito superiores e, acima de tudo, queremos que ele
venha manifestar sua glória entre nós, conforme sua promessa.
Marana thá! Vem, Senhor! é a mais
antiga oração cristã e está inserida na Liturgia eucarística logo após a
consagração das espécies: o Senhor vem, e pedimos ainda mais, que venha
sempre.
À pergunta “quem é o cristão?” São
Basílio Magno responde para nós: “O cristão é aquele que permanece em
vigília a cada dia e a cada hora, pois sabe que o Senhor vem”.
Pe. José Artulino Bese
Nenhum comentário:
Postar um comentário