Através do “Vitória! Tu reinarás! Ó Cruz, tu nos salvarás!”
entoamos um hino eslavo que expressa o mistério da derrota e vitória da
Cruz. A primeira estrofe não deixa dúvidas sobre a vocação da Igreja: “À sombra de teus braços, a Igreja viverá. Por ti, no eterno abraço, o Pai nos acolherá!”.
A Cruz é o abraço amoroso da Trindade. Sem a Cruz, e sem cristãos
assumindo a cruz, não há vida na Igreja: apenas a ilusão diabólica de
que estar livre da cruz é sinal de amor privilegiado de Deus.
A tentação de Cristo no deserto (cf. Lc
4, 1-13) foi a tentação da fuga da cruz e da apresentação do sucesso
como caminho messiânico, tentação de tudo resolver através do milagre,
do espetáculo: “Se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque
está escrito: ‘Ordenou aos seus anjos a teu respeito que te guardassem. E
que te sustivessem em suas mãos, para não ferires o teu pé nalguma
pedra’ (Sl 90,11ss). Jesus disse: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’ (Dt
6,16)”.
Na Sexta-feira santa, sofrendo as mais
atrozes dores e o abandono do Pai, o diabo volta à carga pela boca da
multidão: “Que o Cristo, rei de Israel, desça agora da cruz, para que
vejamos e creiamos” (Mc 15, 32). Queriam espetáculo! Jesus poderia ter
descido da cruz e tudo estaria resolvido. Pelos quatro cantos do mundo
se falaria do homem que prometeu morrer, sofreu dramaticamente, tudo em
preparação para o grande teatro: descer da cruz poderoso e nos braços do
povo sedento por milagres.
A Cruz, imagem da Trindade
Mas, o Senhor não poderia negar a própria
identidade: ele é amor, e tudo o que é e faz brota do amor. A
crucifixão não é a derrota, e sim, o sinal inequívoco de um amor total
na doação: “Quando tiverdes levantado o Filho do homem, então
conhecereis que EU SOU (=Deus) e que nada faço de mim mesmo, mas falo do modo como o Pai me ensinou” (Jo 8,29).
A doação foi e é a Escola do Pai: alguém
pode imaginar que um pai, separando-se do filho para doá-lo em resgate
de uma multidão ingrata, sinta prazer? A primeira Cruz foi a do Pai,
quando permitiu que seu Filho se despojasse da condição divina para ser
igual a nós (cf. Fil 2,6-8). Quando Jesus se retirava para orar,
consolava o Pai por sua ausência, e o Pai o consolava em seu abandono
filial. Deus Pai esvaziou-se da paternidade e o Filho, da filiação. A
Cruz é a imagem da Trindade: nela sofreram o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, pois o amor sem medida fez as três Pessoas se esvaziarem da
comunhão divina.
O amor não é uma festa inocente. Dar o
passo para declarar, na verdade, “eu te amo”, supõe enfrentar o
sofrimento de se auto-anular: “Presentemente, a minh’alma está
perturbada. Mas que direi?… Pai, salva-me desta hora… Mas é exatamente
para isso que vim a essa hora. Pai, glorifica o teu nome!” (Jo 12,
27-28). A cada momento de sua vida pública Jesus era tentado a ser
infiel ao Pai caindo na ilusão do aplauso dos curados e alimentados. Ao
mesmo tempo em que pedia ao Pai ser libertado daquela “hora”, sabia que
aquela era a “Hora” da glorificação: o amor teria a última palavra, por
toda a eternidade seria impossível amar com mais intensidade do que no
Calvário, sinal da grandeza divina capaz de assumir a pequenez total.
A Cruz, imagem da Igreja
Fiódor Dostoiévski, na célebre passagem de Os Irmãos Karamázov (livro V), colocou essas palavras na boca do Grande Inquisidor de Sevilha que reprovava a Cristo a decisão de ter aceito a derrota:
“Tu não desceste da cruz porque, mais uma vez, não quiseste alimentar o
homem com o milagre, e desejavas ardentemente uma fé livre, e não uma
fé dependente de milagres. Ardias por um amor livre, e não a bajulação
servil do escravo diante do senhor”. O Inquisidor poderoso temia o
Cristo frágil que derrubaria o poder dele.
Cristo quer seus discípulos nutridos de
uma fé livre, que se possa expressar num amor livre. A busca do milagre
impede a liberdade da fé e a liberdade do amor. A fé e o amor incluem o
esvaziamento de si para poder abandonar-se no outro. Assim, o Pai
esvaziou-se do Filho para abandoná-lo em nossas mãos. E nós nos
abandonamos no Filho que nos entrega ao Pai.
A Cruz permite ao homem a experiência do
amor na liberdade, sem a necessidade de milagres. Somente quem participa
do sofrimento de Cristo pode participar de sua glória e, deste modo,
ser digno da ressurreição. Quando afirmamos que a Igreja é o Corpo de
Cristo a contemplamos crucificada, renovando a fidelidade ao Pai e
fazendo germinar a Vida nova: a cruz é sinal de sofrimento e de
sacrifício, mas também sinal da salvação e da manifestação da glória de
Deus. Uma Igreja que despreza a fidelidade da Cruz, e se empolga com a
facilidade da estrada do espetáculo, nega a existência de Deus, pois,
negando a fecundidade do sofrimento, ridiculariza o Deus Trindade, cuja
imagem é a Cruz. Ridiculariza os sofredores do pecado do mundo, pois os
considera vítimas do próprio pecado, quando a verdade cristã é outra:
todo inocente que morre na sua inocência, carrega os pecados do mundo, e
nisso é semelhante a Cristo e unido a ele. Afirmava São Serafim de
Sarov: “Onde não há aflição não existe salvação”, pois não é possível a
conversão, podemos acrescentar.
Lembro aqui a palavra do papa Francisco
na Missa com os Cardeais em 14 de março: “Eu queria que, depois destes
dias de graça, todos nós tivéssemos a coragem, sim a coragem, de
caminhar na presença do Senhor, com a Cruz do Senhor; de edificar a
Igreja sobre o sangue do Senhor, que é derramado na Cruz; e de confessar
como nossa única glória Cristo Crucificado. E assim a Igreja vai para
diante”.
Celebrando o mistério da Paixão, Morte e
Ressurreição do Senhor, proclamemos o hino bizantino: “Senhor, tu nos
deste a cruz como arma contra o demônio; ele se atemoriza e treme, não
tendo coragem de contemplar esta potência que faz ressurgir os mortos e
vence a morte; por isso nós veneramos a tua sepultura e a tua
ressurreição”.
Pe. José Artulino Bese
Nenhum comentário:
Postar um comentário