Valmor da Silva
O presente texto mostra a importância da palavra na Bíblia, especificamente no Antigo ou Primeiro Testamento. Também abre janelas para o Novo Testamento. O assunto se impõe por si mesmo, pois a Bíblia é a palavra de Deus para nós. Mas a intenção é destacar como essa palavra ilumina a vida do povo de Deus, na perspectiva da animação bíblica de toda a pastoral.
O estilo é deixar o texto bíblico falar por si mesmo, para valorizar ao máximo as próprias palavras da Bíblia. Em vista disso, procura-se fazer uma leitura atenta de algumas passagens principais, buscando a iluminação de outras, para uma compreensão mais ampla do assunto.
A reflexão está dividida em três partes. A primeira apresenta algumas metáforas sobre a eficácia da palavra de Deus. A segunda expõe os textos principais sobre a importância da palavra na vida do povo. A terceira elenca temas geradores dessa palavra preparada ao longo do Primeiro Testamento.
As citações do texto bíblico seguem a Bíblia Sagrada – Tradução da CNBB (2010). Eventuais observações sobre a tradução ou referências ao original hebraico estão assinaladas no texto ou no comentário.
1. A PALAVRA É COMO...
1.1.Chuva que fecunda a terra
10E como a chuva e a neve que caem do céu para lá não voltam sem antes molhar a terra e fazê-la germinar e brotar, a fim de produzir semente para quem planta e alimento para quem come, 11assim também acontece com minha palavra: Ela sai da minha boca e para mim não volta sem produzir seu resultado, sem fazer aquilo que planejei, sem cumprir com sucesso a sua missão (Is 55,10-11).
Como quem vive na seca do Nordeste brasileiro, o povo de Israel vive no deserto. Para uns e para outros, a chuva é essencial. Para o povo bíblico, também a neve. A chuva é sinal de fecundidade, como o elemento que engravida a terra. Ela provoca o ciclo da vida, porque rega, fecunda, faz germinar e gera alimento para as pessoas. Da mesma forma a palavra, é capaz de gerar novo ciclo de vida. Como mensageiro enviado, ela não volta sem cumprir a missão (Zc 1,5-6). A palavra é irreversível, quer dizer que não volta atrás (Is 45,23).
No cântico de Moisés, ao chamar atenção para a palavra de sua boca, ele pede que sua doutrina goteje como chuva, se espalhe como orvalho, como chuvisco sobre as plantas e como aguaceiro sobre as pastagens (Dt 32,2). Os quatro sinônimos para a chuva sublinham a fertilidade da palavra geradora de vida. O louvor a Deus que rega a terra para produzir frutos encontra-se no Sl 104,13-15.
A fecundidade da palavra tem repercussões no Novo Testamento, na parábola do semeador, onde a semente lançada no bom terreno produz fruto em grande proporção (Mc 4,20), ou na proposta de receber com docilidade e praticar fielmente a Palavra que foi plantada em nós, e que é capaz de salvar-nos (Tg 1,21).
1.2. Fogo que queima por dentro
Pensei: “Nunca mais hei de lembrá-lo, não falo mais em seu nome!” Mas parecia haver um fogo a queimar-me por dentro, fechado nos meus ossos (Jr 20,9).
A força explosiva da Palavra de Deus é comparada ao fogo que arde, queima e devora. Esse fogo queima de dentro para fora, como um incêndio interno e incontrolável. O contexto é o das chamadas confissões de Jeremias, em que ele, após ter sido seduzido e violentado por Deus, sente-se enfim abandonado. Diante da violência e opressão, porém, não lhe resta alternativa senão gritar e denunciar.
A mesma imagem do fogo interno que queima no coração e arde no peito retorna no Sl 39,4, para expressar a fragilidade do ser humano. No discurso de Eliú, esse fogo da palavra vira vinho novo, pressionando para explodir o barril (Jó 32,19). E em Amós, torna-se um leão rugindo atrás do profeta para que fale (Am 3,8).
Em Isaías, a palavra parece uma bomba relógio, programada para produzir o seu efeito: “O Senhor lançou uma ameaça a Jacó, ela caiu sobre Israel... com a ira do Senhor dos Exércitos, incendiou-se a terra... apesar de tudo, sua ira não acabou, seu braço continua erguido (Is 9,7.17.20).
Outro Salmo (29,7) canta a voz poderosa do Senhor, e afirma que ela lança chamas de fogo e despedaça as florestas, como relâmpago ou trovão. Outro ainda compara a Palavra ao calor que derrete o gelo duro (Sl 147,18). E na boca dos profetas que renegaram ao Senhor, a palavra é fogo devorador (Jr 5,14). Mas, “O profeta Elias surgiu como o fogo, e sua palavra queimava como tocha” (Eclo 48,1).
Em paralelo com o fogo que devora, a palavra é comparada à marreta que arrebenta. Literalmente: “Será que minha palavra não é como fogo – oráculo do Senhor -, ou marreta de quebrar pedras?” (Jr 23,29).
O próprio Deus é comparado a um fogo abrasador, por causa do seu ciúme pelo povo da aliança (Dt 4,24), com um calor ao qual ninguém pode resistir (Is 33,14). O Novo Testamento repete: “o nosso Deus é um fogo devorador” (Hb 12,29) e Jesus dirá “Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49).
1.3. Luz que ilumina a caminhada
Lâmpada para meus passos é tua palavra e luz para o meu caminho (Sl 119,105).
A imagem da lâmpada e da luz destaca, positivamente, a função da palavra em iluminar os passos e o caminho. Permite imaginar o caminhante, em plena escuridão, com a lamparina a romper as trevas e vislumbrar o caminho a seguir. Ao alumiar a caminhada, a palavra orienta toda a conduta humana, passo a passo.
O próprio Senhor é a lâmpada que ilumina a treva da vida humana (Sl 18,29). O provérbio também afirma que o mandamento é uma lâmpada e a Lei uma luz (Pr 6,23). O Novo Testamento compara “a palavra da profecia como uma lâmpada que brilha em lugar escuro, até clarear o dia e levantar-se a estrela da manhã em vossos corações” (2Pd 1,19).
1.4. Espada afiada que corta
Fez de minha língua uma espada afiada que ao alcance da mão ele guardou, fez de mim uma seta pontiaguda e em sua aljava me escondeu (Is 49,2).
No contexto do segundo canto do servo, ao reconhecer-se chamado desde o seio materno, o profeta discípulo da palavra compara sua língua a uma espada afiada e a uma flecha pontiaguda. Tanto espada como flecha são metáforas de guerra, a primeira para combater de perto, a segunda para atingir ao longe. Ambas estão escondidas, prontas a serem manejadas pela mão divina, com eficácia total.
A associação entre os louvores na boca e a espada de dois gumes nas mãos consta no louvor do Sl 149,6. No livro da Sabedoria, a morte dos primogênitos do Egito é atribuída à espada afiada do decreto divino (Sb 18,15). A espada como arma da palavra se encontra também em Is 11,4 e Os 6,5.
Outra associação se estabelece entre a palavra do Senhor e o sopro de sua boca. Já no ato da criação, o espírito do Senhor pairava sobre as águas, como ave que choca os ovos no seu ninho (Gn 1,2). Por essa palavra criadora “foram feitos os céus, pelo sopro de sua boca tudo quanto os enfeita” (Sl 33,6). A força da palavra criadora de Deus, no entanto, nos levaria a outro tema amplo e riquíssimo.
O Novo Testamento retoma a comparação entre palavra e espada, como na espada afiada com dois gumes que sai da boca de Cristo (Ap 1,16; 19,15). E a carta aos Efésios recomenda: “empunhai a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6,17). O texto mais conhecido, certamente, é o de Hebreus: “Pois a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração” (Hb 4,12).
1.5. Atleta que corre veloz
Manda à terra a sua mensagem, sua palavra corre veloz (Sl 147,15).
A imagem é clara e inequívoca. A palavra de Deus é um mensageiro com forma atlética de corredor de velocidade.
No Novo Testamento, encontra-se a maravilhosa afirmação segundo a qual “a palavra de Deus não está acorrentada” (2Tm 2,9). A franqueza e liberdade em proclamar a palavra é outro tema que nos levaria longe demais. Paulo pede à comunidade de Tessalônica que ore, “para que a palavra do Senhor continue sua corrida” (2Ts 3,1). Observe-se que a tradução “para que a palavra do Senhor se espalhe rapidamente” (Bíblia Sagrada CNBB) corresponde ao sentido, mas diminui a força da metáfora. A corrida dos atletas nos estádios é bem conhecida no Novo Testamento, e o apóstolo Paulo, com frequência, compara a difusão da palavra à atividade desses competidores (1Cor 9,24; Gl 2,2; 5,7; Fl 2,16).
1.6. Alimento que sacia
2Eu abri a boca e ele me fez comer o rolo, 3dizendo: “Filho do homem, alimenta teu ventre e sacia as entranhas com este rolo que te dou”. Eu o comi, e era doce como mel em minha boca (Ez 3,2-3).
No contexto da vocação de Ezequiel, o profeta é convidado a engolir o rolo da palavra de Deus, quer dizer, antes de proclamar, ele deve assimilar e saborear. Essa palavra é doce como o mel, na boca do profeta. O Salmo reza que as palavras do Senhor são “mais doces que o mel e que o licor de um favo” (Sl 19,11). O profeta Jeremias, ao recordar sua vocação, comenta: “Bastava descobrir tuas palavras e eu já as devorava, tuas palavras para mim são prazer e alegria do coração” (Jr 15,16). A comparação entre a palavra e o alimento nos levaria ao deserto, onde Deus enviou o maná, “para mostrar que não só de pão vive o ser humano, mas de tudo o que procede da boca do Senhor” (Dt 8,3). A afirmação será retomada por Jesus, no contexto da tentação no deserto (Mt 4,4).
A metáfora da palavra como um rolo a ser engolido retorna no Apocalipse (Ap 10,8-11). Lá estão presentes os dois aspectos da palavra. Ela é doce na boca e amarga no estômago. Esses dois sabores contrastantes, certamente, acompanham sempre o anúncio da palavra, pois ora ela anuncia a doçura do mel, ora denuncia o amargor do fel.
1.7. Remédio que cura
Enviou sua palavra para curá-los e preservá-los de descer ao túmulo (Sl 107,20).
A palavra de Deus, enfim, é comparada ao remédio que cura doenças e conserva a vida. O livro da Sabedoria recorda o episódio da serpente de bronze, no deserto, que curava o povo de Deus, e conclui: “De fato, não foi erva nem pomada que os curou, mas a tua Palavra, Senhor, que tudo cura!” (Sab 16,12). No livro de Provérbios, a sabedoria recomenda acolher as suas palavras, pois “elas são vida para os que as encontram e saúde para todo o seu corpo” (Pr 4,22). Numa comparação fantástica, a palavra do Senhor é transmitida pela voz do profeta, para que o espírito infunda vida sobre um montão de ossos secos (Ez 37,1-10).
No Novo Testamento, é na boca de um centurião romano, pagão, de Cafarnaum, que vamos encontrar a confissão de fé, segundo a qual a palavra divina é capaz de curar. A afirmação do centurião supõe que a casa de um pagão não podia ser visitada por um judeu, mas que a palavra de Jesus podia superar essa barreira, como de fato superou. É o que se lê em suas palavras, e que nós repetimos na hora da comunhão: “Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa. Dize uma só palavra e o meu criado ficará curado” (Mt 8,8).
2. A PALAVRA ANIMA A VIDA TODA
O Primeiro Testamento é um celeiro repleto de material sobre a animação bíblica da pastoral e da vida como um todo. A tradição judaica prima por esse zelo pela palavra, como seiva que alimenta toda a vida. A palavra anima não apenas a formação religiosa, litúrgica, ou a catequese específica, mas ela conforma toda a vida cidadã, na família, na escola e na sociedade, em todos os seus setores. É onde a palavra e a própria vida se fundem como uma realidade única.
2.1. Ouve Israel – a palavra na totalidade da vida
4Ouve, Israel! O Senhor (YHWH) nosso Deus é o único Senhor. 5Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma (néphesh em hebraico, que significa garganta, vento, respiro, vida) e com todas as tuas forças. 6E trarás gravadas no teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno. 7Tu as repetirás (inculcarás, com sentido original de aguçar, afiar os dentes) com insistência a teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em casa ou andando a caminho, quando te deitares ou te levantares. 8Tu as prenderás como sinal à tua mão e as colocarás como faixa entre os olhos; 9tu as escreverás nas entradas da tua casa e nos portões da tua cidade (Dt 6,4-9).
O texto é repetido quase integralmente em Dt 11,18-21. Em ambos, o contexto é o mesmo, da promessa da posse da terra. A chamada “Ouve, Israel” (Shema‘ Israel) é uma fórmula estereotipada, repetida várias vezes no Deuteronômio (5,1; 9,1; 20,3; 27,9). Segundo o estudioso alemão Von Rad (1981, p. 71), a expressão “provavelmente era o apelo tradicional com o qual se abria, nos tempos antigos, a assembleia cultual das tribos, a qahal”. Constitui-se num elemento essencial da oração israelita, repetido diariamente. A repetição diária está presente até na atualidade, em ofícios na sinagoga e na oração pessoal.
“Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração...” é a proclamação solene, mas também afetuosa, do primeiro mandamento, por sinal retomado mais tarde por Jesus. A declaração fundamenta também a prática dos filactérios, na tradição judaica, que consiste em carregar pergaminhos com textos bíblicos impressos, em pequenas cápsulas dependuradas nos cabelos ou atadas aos pulsos, evidente interpretação literal do texto em questão. Mas não faltam, na atualidade, tatuagens, amuletos ou vestimentas com frases bíblicas ou similares.
O texto frisa que o envolvimento deve ser da totalidade da vida, “com todo o teu coração, com todo o teu respiro e com todas as tuas forças”.
O primeiro passo é gravar a palavra no coração. O profeta Jeremias confirma a promessa de colocar a lei no fundo do ser e escrever no coração (Jr 31,33).
O segundo passo consiste em repetir com insistência aos filhos. A repetição é essencial para fixar na memória a palavra. O ato de repetir as palavras à família deve envolver, de novo, a totalidade da vida. A maneira bíblica semítica diz isso pelos pares contrários, chamados merismos, para incluir, com dois extremos, tudo o que se situa no meio. Assim se dirá, “ao sentar em casa e ao andar pelo caminho” para expressar a totalidade espacial, e “ao deitar e ao levantar-se” para indicar a totalidade temporal.
O terceiro passo recomenda atar a palavra como um sinal nas mãos, símbolo do agir guiado pela palavra, e dependurar como faixa no meio da testa, entre os olhos, para iluminar e discernir a ação humana. Essa fixação da palavra na mão e na testa, em outro contexto, é motivada pela libertação do Egito (Ex 13,9.16). O provérbio insiste: “A misericórdia e a verdade não te abandonem: ata-as ao teu pescoço, inscreve-as nas tábuas do teu coração” (Pr 3,3; repetido em Pr 6,21 e 7,3).
O quarto passo propõe escrever nas portas de casa e nos portões da cidade, isto é, orientar a vida familiar e a vida cívica, ambos aspectos a serem iluminados pela palavra. Essa prática reflete um costume histórico muito conhecido, no Oriente, segundo Pierre Buis (1969, p. 6).
Jesus retoma a afirmação sobre o primeiro e o maior de todos os mandamentos, na discussão com um escriba (Mc 12,28 e paralelos).
Em síntese, Dt 6,4-9 recomenda: gravar a palavra no coração para memorizar, repetir aos filhos, repetir ao sentar e andar, ao deitar e ao levantar, atar nas mãos e no meio da testa, escrever nas portas da casa e nos portões da cidade.
2.2. De pai/mãe para filho/a – a palavra na família
1Meu povo, escuta meu ensinamento;
presta atenção às palavras da minha boca.
2Vou abrir a boca pronunciando sentenças,
relembrar os mistérios do passado.
3O que nós ouvimos, o que nós aprendemos (conhecemos),
o que nossos pais nos contaram,
4não ocultaremos a seus filhos;
mas vamos contar à geração seguinte
as glórias do Senhor, o seu poder e os prodígios que operou.
5Ele estabeleceu uma regra em Jacó,
pôs uma lei em Israel;
ordenou a nossos pais
que ensinassem (dessem a conhecer) a seus filhos,
6para que tomasse conhecimento a geração seguinte,
a dos filhos que vão nascer,
que por sua vez dirão (contarão) a seus filhos (Sl 78,3-6).
O Salmo se apresenta como fala de mestre de sabedoria, em forma de ensinamento, palavras, sentenças e mistérios (v.1 e 2). Ensinamento (em hebraico torah) é instrução, orientação, caminho de vida a seguir, e pode também ter sentido técnico para designar o Pentateuco, o que não parece ser o caso aqui. Palavra (em hebraico ’imerah) é palavra, fala ou dito. Sentença ou parábola (em hebraico mashal) é, no Salmo, poema didático. Mistério, enigma ou paradoxo (em hebraico hidah) é um dito sapiencial, às vezes em forma de adivinhação, para levar a pessoa a pensar. Esse conjunto de sinônimos designa, portanto, o conteúdo didático a ser ensinado em ambiente familiar, mas que pode também se estender ao templo ou santuário e, mais tarde, também à sinagoga. São termos que provêm da linguagem sapiencial de Provérbios.
O texto se caracteriza pela repetição de termos como pais (v.3.5), filhos (v.4.5.6ab), geração (v.4.6), contar (v.3.4.6), conhecer (v.3.5.6).
Estes poucos versículos, em seu conjunto, consideram quatro gerações, a saber, nossos pais, nós mesmos, nossos filhos, nossos netos ou filhos de nossos filhos. As quatro gerações estão encadeadas numa corrente que não se pode romper (SCHÖKEL; CARNITI, 1998, p. 1008).
O texto se orienta pela dinâmica da narração oral, com insistência na repetição. A repetição era o método comum de aprendizado, visando fixar os ensinamentos na memória. A memória é essencial para um povo de tradição oral. A história, cultura e a própria identidade eram mantidas através do cultivo da memória viva. Esse fato assegurava a manutenção das próprias raízes culturais do povo. Era necessário aprender do passado, para construir melhor a própria história e projetar um futuro mais feliz para a própria descendência. É a famosa leitura da história como mestra da vida, para aprender dos erros e acertos do passado. O conteúdo dessa memorização, no caso, são os fatos gloriosos do passado, numa espécie de síntese da história da salvação.
A responsabilidade da transmissão do conhecimento cabia aos pais. Toda a base escolar do aprendizado situava-se na casa ou na família, embora houvesse, desde a monarquia, escolas formais com mestres que ensinavam.
A transmissão da tradição de pai/mãe para filho/a, de geração em geração tem ecos em toda a Bíblia. O Sl 44,2-3 se inicia justamente com esse refrão “os nossos pais nos contaram”. E o Sl 145,4 se dirige a Deus dizendo: “Uma geração conta à outra as tuas obras, anunciam as tuas maravilhas” (Sl 145,4).
A recomendação para que Israel transmita aos filhos as maravilhas do Senhor consta em Dt 4,9-10, recordando ainda o contexto da Palavra divina outorgada no Horeb (Sinai), com a ordem expressa de ensinar aos filhos. No próprio Deuteronômio, mais adiante, Moisés questiona o povo sobre a rebeldia do passado, e lança o desafio: “Pergunta a teu pai e ele te ensinará, a teus avós e eles te dirão” (Dt 32,7). Também no contexto de devastação do país, o profeta Joel começa provocando os anciãos e cidadãos: “Contai tudo a vossos filhos, para que eles contem a seus filhos e estes às gerações futuras” (Jl 1,3). No livro de Jó, Baldad apela para história: “Interroga a geração passada e investiga com cuidado a memória dos antigos” (Jó 8,8). O Eclesiástico, enfim, chama a atenção: “Não te escape o que contam os velhos, pois eles o aprenderam de seus pais” (Eclo 8,11).
Jesus também abre a boca em parábolas (Mt 13,35). Com efeito, ele é o mestre que transmite os ensinamentos aos discípulos e recomenda que os transmitem a todas as nações (Mt 28,19).
Em síntese, o Sl 78,3-6 recomenda: a iniciação da palavra acontece na família, com a transmissão da tradição de pais/mães para filhos/as e netos/as, do conteúdo das glórias, poder e prodígios do Senhor.
2.3. Não rejeites a disciplina – a palavra na pedagogia
1Meu filho, não te esqueças da minha instrução
e teu coração guarde meus preceitos:
2pois eles trarão dias duradouros para ti,
muitos anos de vida e paz.
3A misericórdia e a verdade não te abandonem:
ata-as ao teu pescoço, escreve-as na tábua do teu coração,
4e alcançarás graça e bom sucesso
Diante de Deus e dos outros.
5Confia no Senhor com todo o teu coração
e não te apoies na tua própria prudência:
6pensa nele (reconhece-o) em todos os teus caminhos,
e ele conduzirá teus passos.
7Não sejas sábio a teus próprios olhos;
teme o Senhor e afasta-te do mal:
8isto trará saúde para teu corpo
e vigor para teus ossos.
9Honra ao Senhor com a tua riqueza
e com as primícias de todos os teus frutos:
10e teus celeiros ficarão cheios de trigo
e transbordarão de vinho os teus lagares.
11Meu filho, não rejeites a disciplina do Senhor
Nem a desprezes, quando ele te corrige,
12pois o Senhor corrige os que ele ama,
como um pai, ao filho preferido (Pr 3,1-12)
Neste texto do livro de Provérbios encontramos uma proposta pedagógica interessante, que ilustra a prática de assimilação da palavra, seja na família, seja na escola. Os elementos essenciais do processo de aprendizado podem ser notados claramente ao longo do texto. Para uma análise mais completa, pode-se conferir o estudo recente do mesmo autor desta reflexão (SILVA, 2011).
O texto como um todo possui parentesco estreito com Dt 6, o texto e contexto do Shema‘ anteriormente analisado.
O poema é bem estruturado, em seis quadras, compostas de maneira bastante simétrica. Cada uma das quadras contém uma exortação, seguida da promessa da consequente obediência à mesma exortação. A primeira exorta a não esquecer a instrução (v.1) com a promessa de vida longa (v.2). A segunda exorta a escrever misericórdia e verdade nas tábuas do coração (v.3) e promete o favor de Deus e dos seres humanos (v.4). A terceira exorta a confiar no Senhor (v.5) e promete caminhos retos (v.6). A quarta exorta a temer ao Senhor (v.7), acompanhada da promessa de saúde (v.8). A quinta manda honrar ao Senhor com as primícias (v.9), e promete fartura nas colheitas (v.10). A sexta refaz a clássica exortação de seguir a disciplina (v.11) com a consequente promessa de que o Senhor repreende a quem ele ama (v.12).
As exortações são em geral expressas com formulação negativa, “não te esqueças”, enquanto as promessas possuem geralmente formulação positiva “trarão dias duradouros”.
A formulação das promessas expressa uma espécie de teologia da retribuição, que condiciona a graça divina ao reto agir humano. A teologia da retribuição, expressa em todas as promessas, unida à teologia do temor do Senhor, expressa nos v.7 e 9, levam a localizar o texto no pós-exílio. Mas, nosso objeto de interesse aqui está na proposta pedagógica que o texto apresenta, em suas exortações.
As exortações definem um método pedagógico de aprendizado bastante claro, com passos bem definidos. Apresenta-se como a instrução (torah) e preceitos (mitswôt) de pai/mãe para filho/a, sendo que essa formulação define também a relação mestre discípulo/a. Que a mãe participasse da educação da família é evidente, numa sociedade em que ela, além de amamentar até os três anos, era a responsável pela primeira educação e socialização das crianças. A instrução se refere ao ambiente familiar, mas explicita o mesmo método utilizado num sistema público de verdadeiras escolas.
O primeiro passo dessa pedagogia é a memorização, que o texto explicita com as expressões não esquecer e guardar no coração (v.1), atar ao pescoço e escrever nas tábuas do coração (v.3). Memorizar era o processo tradicional de aprendizado na antiguidade. Todo o processo pedagógico se assentava sobre a memória. Tratava-se, literalmente, de escrever textos inteiros “na tábua do coração”. O coração era considerado a sede das atividades conscientes, intelectuais, afetivas e morais, na Bíblia e na literatura egípcia. A sua associação à atividade da memória é recordada até mesmo na língua portuguesa, que herdou a expressão aprender “de cor”, como abreviatura de aprender “de coração”. Tanto o costume de escrever “na tábua do coração” quanto o de “atar ao pescoço”, poderiam referir-se a costumes egípcios, de atar tabuinhas com dizeres a serem memorizados.
O segundo passo consiste em confiar no mestre, expresso nas palavras “confia no Senhor de todo o teu coração” (v.5). A relação entre confiar no mestre professor e no mestre divino era muito real e palpável. De qualquer forma, o ponto de apoio está em outra pessoa, não na própria inteligência. Essa atitude de confiança em Deus, mestre dos mestres, e no professor, seu intermediário, se desdobra em quatro posturas, que são: confiar (v.5), reconhecer (v.6), temer (v.7) e honrar (v.9). Confiar significa entregar-se “com todo o coração”. Reconhecer envolve toda a atividade do conhecimento. Temer e “afastar-se do mal” abrange a atitude ética. Honrar tem a ver com a piedade, isto é, com a mística e a espiritualidade.
O terceiro passo, enfim, diz respeito à disciplina (v.11 e 12). “Disciplina” e “correção” faziam parte da pedagogia habitual, na antiguidade. A repreensão, mesmo com castigo físico, era considerada normal na educação, e representava manifestação de amor, embora questionada pela moderna pedagogia. “Como um homem corrige o seu filho, assim te corrige o Senhor teu Deus” (Dt 8,5). Vários provérbios são formulados como instrução de pai/mãe a ser ouvida por filho/a. Inúmeros outros textos bíblicos abordam essa pedagogia divina, reflexo da própria pedagogia dos pais e mestres (Jó 5,17-18; Sl 119,67.71.75; Am 4,6-11 etc).
A ideia segundo a qual os cristãos são cartas escritas pelo Espírito de Deus, em tábuas de carne, nos corações, é expressa por Paulo a propósito das cartas de recomendação requeridas pelos seus adversários (2 Cor 3,3). O método pedagógico segundo o qual Deus corrige como um pai ao filho a quem ama é retomado, literalmente, em Hb 12,5-6. Também no Apocalipse, diz à Igreja de Laodicéia: “Quanto a mim, repreendo e educo todos os que amo” (Ap 3,9).
Em síntese, Pr 3,1-12 propõe: memorizar o texto, guardar no coração, atar ao pescoço e escrever nas tábuas do coração, em seguida confiar no mestre, através do conhecimento, atitude ética e honra ao mestre, e finalmente submeter-se à disciplina, pois Deus educa como pai ao filho.
2.4. Trago os frutos da terra – a palavra na celebração da vida e da história
5Então declararás diante do Senhor teu Deus:
‘Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro. Mas ele tornou-se um povo grande, forte e numeroso. 6Então os egípcios nos maltrataram e oprimiram, impondo-nos uma dura escravidão. 7Clamamos então ao Senhor, Deus de nossos pais, e o Senhor ouviu nossa voz e viu nossa opressão, nossa fadiga e nossa angústia; 8o Senhor nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, no meio de grande pavor, com sinais e prodígios, 9e nos introduziu neste lugar, dando-nos esta terra, terra onde corre leite e mel. 10Agora, pois, trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor’.
E depois de depositar os frutos diante do Senhor teu Deus, te prostrarás diante dele (Dt 26,5-10).
O texto ilustra um momento celebrativo, com palavra e com gestos. Na verdade o contexto é de três rituais interligados. No rito de introdução, que precede e emoldura este, encontra-se a cerimônia de oferta da cesta com as primícias das colheitas, ao sacerdote, diante do altar (Dt 26,1-4.10).
O rito central consiste na recitação desta profissão de fé, em recordação dos grandes feitos do Senhor ao longo da história (Dt 26,5-10).
O rito seguinte consiste na prática da ajuda às pessoas pobres e necessitadas (Dt 26,12-15). Recomenda celebrar com o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva. São os quatro grupos que representam as categorias marginalizadas no Deuteronômio e na Bíblia toda, e têm a ver, todos eles, com a impossibilidade de possuir a terra. Na verdade, por definição, todas estas categorias se caracterizam por não ter acesso a nenhuma posse.
No contexto da oferta das primícias e da ajuda aos pobres, portanto, recita-se uma profissão de fé ao Senhor, em terceira pessoa, isto é, de maneira narrativa, sem dirigir-se diretamente a Deus, em segunda pessoa. O contexto histórico é o da festa anual, agrária, sedentária. Obedece ao ritmo dos trabalhos no campo, com oferta dos primeiros frutos das colheitas, originalmente nos santuários e, mais tarde, centralizada no templo de Jerusalém. O conteúdo liga a oferta das primícias da terra ao dom da terra que mana leite e mel (v.9). A chave de leitura que percorre todo texto é o verbo “entrar”, não perceptível na tradução para a língua portuguesa. Joga sobre “entrar” e “fazer entrar” na terra (v.1.3.9) e “entrar” e “fazer entrar” a cesta da oferta (v.3.10).
O conteúdo dessa confissão de fé, conhecido como credo histórico, refaz as grandes etapas da caminhada, numa síntese da história da salvação, centrada sobre a libertação do Egito. Não faz a recitação de um mito, como acontecia com outras nações, nem recita uma lista de verdades dogmáticas, mas expressa uma história vivida, onde Deus atua com sua presença constante. O movimento alterna opressão e libertação, de arameu errante para grande povo, e de angústia e escravidão para a liberdade e posse da terra (BÍBLIA DO PEREGRINO, notas a Dt 26). As grandes etapas recordadas são: patriarcas e matriarcas nômades, grupo estrangeiro no Egito, opressão do Egito, clamor ao Deus que ouviu a voz e viu as angústias, saída do Egito, posse da terra que mana leite e mel (BUIS, 1969, p. 248-9).
Diversos outros textos bíblicos enfocam conteúdos de “confissões” semelhantes, recordando as etapas da história. Quando teu filho te perguntar pelo significado dos decretos divinos, responderás, com a mesma história de libertação (Dt 6,20-23). Na introdução da assembleia de Siquém, Josué faz uma motivação recordando a história dos feitos passados. (Js 24,1-13). Panorama semelhante retoma Neemias, no contexto da liturgia penitencial (Ne 9,7-25). Também no contexto de prece de louvor, encontram-se as sínteses dos Salmos (Sl 105 e 136). Mais tardiamente, a história da salvação é apresentada no livro de Judite (Jt 5,6-19.
É na celebração da páscoa, festa principal que lembra a libertação do Egito, quando a história fundamenta a fé e a família é inserida nessa dinâmica de alimentar-se pela palavra. “Quando vossos filhos vos perguntarem: ‘Que significa este rito?’ respondereis: ‘É o sacrifício da Páscoa do Senhor...’” (Ex 12,26-27). O repasse da explicação da saída do Egito à pergunta do filho retorna logo adiante (Ex 13,8-9.14-16). Ao enviar Moisés ao faraó, a ordem de Deus é motivada pela mesma tradição: “Assim poderás contar a teus filhos e netos a maneira implacável como tratei os egípcios e os prodígios que realizei no meio deles” (Ex 10,2). A travessia do Jordão, como novo Êxodo para a entrada na terra, é acompanhada pelo mesmo ritual celebrativo da pergunta do filho e da explicação histórica (Js 4,21-24).
A comparação da vida cristã com as primícias do Espírito de Deus consta na carta aos Romanos (Rm 8,23; 11,16), na carta de Tiago (Tg 1,18) e no Apocalipse (Ap 14,4). A promessa de que os pobres e mansos herdarão a terra está no centro do Evangelho de Jesus (Mt 5,4)
Em síntese, Dt 26,5-10 propõe: celebrar a realidade da vida e o conteúdo da história, os feitos de Deus, pelo positivo e pelo negativo, centrado na libertação e posse da terra, diante do altar, no templo, na festa das primícias e em casa, na festa da páscoa.
3. PREPARADA PELA TORÁ, PROFETAS E ESCRITOS
Dos muitos modos como Deus se manifesta, a Bíblia é um lugar privilegiado. Aqui temos a palavra feita carne, na pessoa de Jesus. Mas essa palavra é preparada no Antigo ou Velho Testamento, também dito Primeiro Testamento. A base desse Testamento, na verdade, é a Bíblia dos judeus, bem denominada de Bíblia Hebraica. Na tradição judaica, que nós também assumimos, essa Bíblia é composta de três coleções, Lei (Torah), Profetas, (Nebiîm) e Escritos (Ketubîm). Para abreviar com as iniciais, no judaísmo é dita TaNaK.
3.1. A Torah como Lei ou Instrução
A Torah compreende os cinco primeiros livros da Bíblia, e corresponde ao nosso Pentateuco. Normalmente se traduz como Lei, mas a tradução melhor seria instrução, orientação, direção. O que motiva essa instrução é que ela deve ser escrita no fundo do coração (Jr 31,33). A Torah é, naturalmente, um texto aberto, que se derrama pela Bíblia toda, Primeiro Testamento e Testamento Cristão.
A seguir, elencamos alguns temas, no Pentateuco, dessa palavra preparada que percorre toda a Bíblia. O elenco é ilustrativo, a modo de síntese, não consegue abarcar a riqueza da palavra.
Criação e nova criação (Gn 1-11)
Dois poemas apresentam a criação do universo e do ser humano, pela palavra de Deus que diz e faz (Gn 1-2).
Após o sonho do paraíso, a queda e o dilúvio, segue-se a nova ordem do mundo, na aliança com Noé e seus filhos (Gn 9).
O céu foi feito com a palavra de Deus, pois ele falou e tudo se fez (Sl 33,6-9; Lm 3,37; Jt 16,14; Sb 9,1).
A mão do Senhor funda a terra e sua destra estende os céus (Is 48,13).
A nova criação compreenderá novos céus e nova terra (Is 65,17-25).
“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus. Tudo foi feito por meio dela” (Jo 1,1-2).
O novo céu e a nova terra projetam o retorno ao paraíso (Ap 21,1).
Patriarcas e matriarcas (Gn 12-50)
A memória do nomadismo patriarcal compreende o ciclo de Abraão e Sara, o de Isaac e Rebeca, o de Jacó, Lia e Raquel, e o de José.
O modelo de fé dessas personagens permanece ao longo de toda a Bíblia.
Além da caminhada da fé, merecem destaque as informações sobre o sistema familiar patriarcal tribal, a vida migrante do nomadismo, os fortes laços familiares, os gestos de hospitalidade, os ritos de nascimento, casamento e morte, a participação das mulheres na vida social.
Dentre os vários temas, destacamos circuncisão, esterilidade, promessa, partilha, bênção, aliança, intercessão.
A memória da fé exemplar dos antepassados está sintetizada em Hb 11, como reflexo de várias outras passagens.
O próprio Jesus retoma o sistema patriarcal tribal ao propor um grupo familiar de discípulos, celebrando com pão e vinho, numa casa, numa quinta-feira, e partilhando uma vida de amor igualitário.
Da escravidão à libertação (Ex 1-15)
As narrativas do Êxodo compreendem a passagem da escravidão para a libertação, com a promessa da posse da terra.
Incluem os motivos da articulação das mulheres, da vocação e resistência de Moisés, dos prodígios ou pragas, da festa da Páscoa e da travessia do mar.
Os motivos do Êxodo são relidos nas profissões de fé (Dt 26,5-9), nos profetas (Is 43,16-21), na oração dos Salmos (Sl 78), na tradição sapiencial (Sb 10,15-21), nas cartas de Paulo (1Cor 5,6-8), nos Evangelhos (Mt 2,13-23), em Hebreus (Hb 3,1-5) e no Apocalipse (Ap 15,3-4).
Caminhada do deserto (Ex 15-18)
A travessia do deserto é narrada em Ex 15,22-18,27 e é retomada em Nm 11-14.
Reúne passos da caminhada em preparação ao encontro com Deus no Sinai. Expõe as dificuldades encontradas e as soluções buscadas, como a sede e a água da rocha, a fome e o maná com codornizes, a murmuração e suas consequências, o inimigo amalecita e a luta para vencê-lo, a dispersão e o reencontro das famílias, o exercício do poder e a descentralização graças ao conselho do sogro Jetro.
Motivos tão conhecidos, como os da água e do pão, se espalham de Gênesis a Apocalipse.
Código da aliança (Ex 19-24)
O código da aliança explicita o contrato entre Deus e seu povo, com centralidade no decálogo, conhecido como dez mandamentos (Ex 20 e Dt 5).
A Bíblia pode ser caracterizada toda como a história da aliança de Deus com o povo. Recorda-se a aliança com Noé e com toda a criação (Gn 9,8-17), com Abraão e sua descendência (Gn 17), com Moisés e o povo de Israel (Ex 19), com Josué e as tribos (Js 24), com Davi e o reino (2Sm 7,12-14), com os profetas, sobretudo Jeremias, e a nova aliança do coração (Jr 31,31-34), retomada por Jesus na nova aliança em seu sangue (Lc 22,20 e paralelos).
O santuário (Ex 25-40)
As instruções sobre o santuário, a tenda, os ministros e as celebrações, referem-se à santidade divina e à sua habitação no meio de nós.
Código de santidade (Lv 17-26)
Todo o Levítico trata da pureza como critério de santidade para o contato com Deus.
Em seu núcleo, localiza-se o chamado código de santidade, que se baseia no critério: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2).
O código de santidade inclui orientações sobre as várias festas do ano (Lv 23), sobre o ano sabático e jubilar (Lv 25; Dt 15), sobre bênçãos e maldições (Lv 26; Dt 27-28; Nm 6,22-27).
Código deuteronomista (Dt 12-26)
O código deuteronomista retoma as grandes orientações sobre a vida e o culto de Israel, com prioridade para a centralização do culto em Jerusalém, defesa da monarquia e da dinastia de Davi.
A conclusão desse código é justamente a profissão de fé expressa no credo histórico, anteriormente comentado (Dt 26,5-10).
3.2. A profecia como denúncia das injustiças
A profecia representa, possivelmente, a maior contribuição do judaísmo à igreja e mesmo à humanidade como um todo. Compreende-se a profecia como denúncia das injustiças e como luta pela construção de nova sociedade. Na Bíblia Hebraica, a coleção dos Profetas (Nebiîm) compreende os profetas anteriores, que nós denominamos livros históricos (Js, Jz, 1 e 2 Sm; 1 e 2 Rs) e os profetas posteriores. Os posteriores abrangem os maiores (Is, Jr e Ez) e a coleção dos doze profetas ditos menores (Os; Jl; Am; Ab; Jn; Mq; Na; Hab; Sf; Ag; Zc; Ml).
Dentre inúmeros aspectos da atividade profética, destacamos a luta pela justiça, em rápidos tópicos.
A luta pela justiça
O pressuposto fundamental é que só Deus é justo e capaz de fazer justiça: “O senhor é justo em todos os seus caminhos, santo em todas as suas obras” (Sl 145,17).
A justiça humana é mera imitação da divina.
O profeta Natã denuncia o rei Davi pela traição e morte de Urias (2Sm 12,1-7a).
Elias denuncia o rei Acab pelo roubo da vinha de Nabot (1Rs 21,1-24).
O conceito de justiça divina, defendido pelos profetas, é a defesa das categorias marginalizadas, pobres, estrangeiros, órfãos e viúvas (Ex 23,6-9).
O Salmo proclama que a justiça e paz se abraçarão (Sl 85,9-11).
Amós denuncia a venda do justo por prata (Am 2,6-8) e faz coro a Isaías, quando afirma que Deus não quer sacrifícios... mas que a justiça corra como rio (Am 5,21-25; Is 1,10-17).
Isaías denuncia e ameaça contra o latifúndio (Is 5,8-10; 1 Rs 21), e promete que o rei messiânico será o defensor dos pobres, quando o lobo poderá pastar com o cordeiro (Is 11,1-9).
Miquéias investe contra chefes, juízes, sacerdotes e profetas (Mq 3,9-11).
Habacuc dispara “ais” contra a exploração para amontoar riquezas (Hab 2,5-11).
Jesus retoma a tradição profética no anúncio do Reino de Deus como reino de paz e de justiça. Ele é considerado o profeta por excelência.
O sinal é dado na resposta ao Batista: “cegos recuperam a vista, paralíticos andam, leprosos são purificados e surdos ouvem, mortos ressuscitam e a pobres se anuncia a Boa-Nova” (Lc 7,22).
Jesus também dispara “ais” contra os ricos e os que agora riem (Lc 6,24-26).
A lógica das bem-aventuranças, segundo a proposta de Jesus, é que os que agora choram hão de rir (Lc 6,20-26).
A chamada parábola do juízo final acentua a justiça que deverá se estabelecer na nova sociedade (Mt 25,31-46).
3.3. Os Escritos como proposta de sabedoria
Além da coleção da Lei e dos Profetas, os demais livros da Bíblia Hebraica são chamados Escritos (Ketubîm). O núcleo dessa coleção é formado pelos livros sapienciais. Jó aprofunda o tema do sofrimento do justo. Os Salmos constituem o livro de oração de Israel. Os Provérbios transmitem a tradição da sabedoria popular. Eclesiastes levanta questionamentos sobre a vida humana. O Cântico dos Cânticos se concentra sobre o amor humano apaixonado. Os Escritos incluem também uma coleção conhecida como rolos (em hebraico meguillôt), uma espécie de Pentateuco popular, com os cinco livros, a saber: Rute; Cântico dos Cânticos; Eclesiastes; Lamentações e Ester. Incluem-se ainda, nos Escritos, a obra do Cronista, que compreende 1 e 2 Crônicas; Esdras e Neemias. Faz parte dos Escritos também o livro de Daniel, representante de outra grande corrente bíblica, a apocalíptica.
A Bíblia Católica inclui mais sete livros, conhecidos como deuterocanônicos, Baruc; Eclesiástico ou Sirácida; Sabedoria; Tobias; Judite; 1 e 2 Macabeus.
Apresentamos o vasto assunto da sabedoria com alguns tópicos ilustrativos.
A sabedoria é a arte de bem viver
A literatura sapiencial é profundamente atual, por vários motivos. Mostra a cultura popular, expressa em provérbios, ditos e causos. Recupera a vida cotidiana do dia a dia, com a casa, as crianças, as relações familiares. Favorece o diálogo entre as culturas, atravessa gerações, lugares e povos. Manifesta a resistência das categorias marginalizadas e oprimidas. Rompe a distinção entre sagrado e profano, integrando a totalidade da vida. Valoriza a mulher e ajuda a romper com o machismo e o patriarcalismo.
Sabedoria pode ser a capacidade do rei bem governar, como Salomão (1 Rs 3,4-15; Sb 9,1-18).
É qualidade humana, artística, artesanal (Pr 25,1-15; Eclo 38,24-34).
É habilidade de escriba profissional (Eclo 39,1-11).
É personificada como mulher (Pr 8,22-31).
É dom do Espírito, na perspectiva messiânica (Is 11,1-9).
Inacessível aos seres humanos, ela é atributo exclusivo de Deus (Jó 28).
Está na lei dada a Israel (Br 3,32-4,4).
Jesus é apresentado como sábio, como filho da sabedoria e até mesmo como a própria sabedoria (Jo 1,1-14).
No Tabor, ao lado de Moisés (Lei) e Elias (Profetas), Jesus poderia representar a Sabedoria (Escritos) (Mc 9,4).
No diálogo com Marta, ele é a sabedoria que sai ao encontro, na rua (Jo 11).
Maria também é denominada a sede da sabedoria (sedes sapientiae).
Algumas metáforas sobre Deus, para concluir
A Sagrada Escritura estabelece o nosso relacionamento com Deus. Dizer quem é Deus, como ele é, e como se relaciona conosco, é essencial. Mas como pode a retina do olho humano fixar-se na luz do sol? A melhor maneira é explicar por imagens, figuras e símbolos. Por isso, a Bíblia usa tantas comparações diferentes para falar de Deus (ALEIXANDRE, 2008).
Seio materno é a imagem para falar do amor misericordioso de Deus. Em pleno deserto, Moisés questiona a Deus: “Acaso fui eu quem concebeu ou deu à luz este povo, para que me digas: ‘Carrega-o no colo, como se fosse uma babá a levar uma criança, até a terra que prometeste a seus pais?’” (Nm 11,12). Deus ensina a andar, toma no colo, amamenta (Os 11,3-4), consola como uma mãe (Is 66,13), não se esquece de nós, ainda que uma mãe pudesse esquecer o seu filhinho (Is 49,24-15). Como Deus se comove nas entranhas (Jr 31,20), assim Jesus, com frequência, se enche de compaixão, como no milagre do pão, quando suas entranhas se comovem diante da fome da multidão (Mc 8,2).
Rocha firme é a comparação para a segurança que Deus nos transmite. Ele é rocha, fortaleza, rochedo, escudo (2Sm 22,2-3.47). O seu direito, justiça e retidão só podem ser comparados ao rochedo inabalável (Dt 32,3-4). Ele é rocha eterna (Is 26,4-5; 17,10). Jesus passa a ser a pedra angular (At 4,11) e Paulo, lembrando a rocha do deserto, afirma que aquela pedra era o Cristo (1Cor 10,4).
Tenda de refúgio mostra como Deus é peregrino, caminha conosco, acampa em nosso meio (Ex 25,8; 33,7-11). O salmista reza com frequência para habitar na tenda do Senhor (Sl 27,5; 61,5). A abóbada celeste é comparada à tenda divina (Is 40,22). Jesus ensina a rezar ao Pai que está nos céus (Mt 6,9).
Como águia que cuida do ninho e estende as asas, assim é Deus que nos conduz (Dt 32,10-12). Jesus tentou inúmeras vezes reunir os filhos de Jerusalém como a galinha reúne os pintainhos debaixo das asas (Mt 23,37).
Festa de banquete é uma comparação comum ao longo da Bíblia, para expressar a nossa vida com Deus. Deus prepara um banquete com carnes gordas e vinhos finos (Is 25,6-8; Sl 5,3). As imagens de Deus que alimenta percorrem toda a Escritura, nas figuras do maná, pão, trigo, água, vinho, leite, mel... Jesus compara o Reino dos céus a banquete diversas vezes. Alimenta as multidões, com multiplicações de pães e com transformação de água em vinho.
Nuvem e vento são outras metáforas para expressar a presença de Deus e do seu Espírito. As nuvens são imaginadas, normalmente, como a habitação divina (Sl 104,3; Is 19,1). Desde a aliança com Noé, ele coloca seu arco nas nuvens (Gn 9,13). Ao longo da caminhada do povo pelo deserto, Deus o acompanha em sua nuvem luminosa (Ex 40,34-38). No batismo de Jesus, rasga-se o céu e Deus se torna presente entre nós (Mc 1,10).
REFERÊNCIAS
ALEIXANDRE, Dolores. Revela-me teu nome (Gn 32,30) – Imagens bíblicas para falar de Deus. São Paulo: Paulinas, 2008.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia do Peregrino. Tradução e notas de Luis Alonso Schökel. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia Sagrada – Tradução da CNBB. 10ª edição. Brasília: CNBB, 2010.
Bíblia tradução ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994.
BUIS, Pierre. Le Deutéronome. Paris: Beauchesne, 1969.
BROSHUIS, Inês. A Bíblia na catequese. São Paulo: Paulinas, 2002.
CARAVIAS, José Luis e SOUZA, Marcelo de Barros. Coisas da Bíblia – Guia bíblico para as Comunidades Eclesiais. Paulinas: São Paulo, 2001.
SBB. Chave Bíblica. Sociedade Bíblica do Brasil: Brasília, 1970.
SCHÖKEL, Luís Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos II. São Paulo: Paulus, 1998 (Grande Comentário Bíblico).
SILVA, Valmor da. Soltar a Bíblia. Coluna Bíblica, Bíblia e Vida. CEBI-Sul: São Leopoldo, 25/09/94.
SILVA, Valmor da. Palavra-Pão. Coluna Bíblica, Bíblia e Vida. CEBI-Sul: São Leopoldo, 24/09/95.
SILVA, Valmor da. Meu filho, minha instrução não esqueças – Leitura de Provérbios 3,1-12. Sobre a Palavra de Deus – Livro em homenagem a Johan Konings. Petrópolis: Vozes, 2011 (no prelo).
VON RAD, Gerhard. Deuteronomio. Brescia: Paideia, 1981.
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