Repensando a Missão Evangelizadora em Tempos de Mudança
Agenor Brighenti
Às vezes, quiséramos ignorar, mas não há como negar. Sobram evidências de que estamos imersos em um tempo marcado por profundas transformações. E, praticamente, como elas atingem todas as esferas da vida social, mergulham-nos em um tempo de crise: crise de paradigmas e das utopias, das ciências e da razão, dos metarrelatos e das instituições, crise de identidade, das religiões, de valores, crise de sentido. É um tempo incômodo, pois, está permeado de incertezas e angústias, mais ingente à criatividade do que ao plágio ou para agarrar-se a velhas seguranças de um passado sem retorno.
Entretanto, como nos adverte a sabedoria oriental, crise não é “fim-da-história” ou “beco-sem-saída”. Crise é encruzilhada, ocasião de novas oportunidades, mas à condição de não fugirmos dela. Crise é metamorfose, passagem, travessia, só que tanto para a morte como para um novo nascimento, dependendo de como a enfrentamos. Se fugirmos dela, é presságio de um fim catastrófico; se a assumirmos, é prenúncio de um tempo pascal, de um novo começo.
Como atesta o amplo leque de mudanças em curso, em grande medida, a crise atual deve-se à crise da modernidade, do projeto civilizacional moderno, responsável pelas maiores conquistas para a humanidade, mas, ao mesmo tempo, pelas maiores frustrações da história. Por um lado, não se podem descartar valores como democracia, liberdade, igualdade, ciência, estado de direito, tecnologia, autonomia da subjetividade, tolerância, mas por outro, é preciso reconhecer que a sociedade moderna, fundada no mito do progresso, deixou sem respostas as questões mais ligadas à finalidade do progresso e da aventura tecnológica, à realização e à felicidade pessoal, enfim, ao sentido da vida. Prova disso, é a irrupção de novas realidades, frente às quais o projeto civilizacional tornou-se mais curto do que falso e, com elas, a emergência de novas aspirações e valores. Em outras palavras, a crise atual deve-se mais à emergência de novas perguntas e à busca de novas respostas a aspirações legítimas até antes não contempladas, do que aos equívocos da modernidade, por mais numerosos e graves que tenham sido.
Consequentemente, a saída da crise não está em ser anti-moderno ou pré-moderno; em ser pós-moderno ou em aferrar-se à modernidade; e, sim, em dar um passo a mais dentro da modernidade, redimensionando e acrescentando novas aspirações ao seu projeto, que ainda não foi substituído por nenhum outro que o supere. Ou seja, apesar de estarmos mergulhados em tempos de crise trata-se, pois, de olhar para frente, de dar respostas novas às novas perguntas, de criar o novo em nosso presente, alicerçados nas conquistas do passado.
Para nos situar no atual momento eclesial e pastoral é importante ter presente este pano-de-fundo, pois também a experiência religiosa e a Igreja passam por profundas mudanças; também a instituição eclesial, as teologias e a pastoral estão mergulhadas num tempo de crise; também no meio religioso, entre ambigüidades e retrocessos, irrompem novas realidades e legítimas aspirações. E também nós os cristãos, se formos às causas da atual crise pastoral, nos deparamos com a crise da sociedade, que afeta igualmente a Igreja. E nem poderia ser diferente, pois o mundo é constitutivo da Igreja. Não é o mundo que está na Igreja, mas é a Igreja que está no mundo. O Povo de Deus peregrina no seio de uma humanidade toda ela peregrinante. E o destino do Povo de Deus não é diferente do destino de toda a humanidade. E tal como na sociedade atual em relação à modernidade, também na Igreja, a começar pelo Papa até leigos da paróquia mais longínqua, há dificuldade em situar-se em nosso novo tempo, para interagir com ele e, sobretudo, há dificuldade de aprender e enriquecer-se com as novas realidades emergentes.
A crise da modernidade afeta diretamente a Igreja, pois nela está também implicado o Concilio Vaticano II, dado que, entre outros, ele significou a reconciliação da Igreja com o mundo moderno, depois de cinco séculos de oposição e excomunhão em bloco. O que representa a modernidade para a humanidade, significa o Vaticano II para a Igreja. E da mesma forma que a modernidade está em crise, também o Vaticano II atravessa uma profunda crise, para muitos um grande equívoco, num momento de ingênuo otimismo eclesial, como foi o agitado “maio 68”. Os saudosistas do rito tridentino, entre outros, querem anular o Vaticano II, que segundo eles destruiu a Igreja. Estaria, então, a saída da crise eclesial e pastoral em ser anti-Vaticano II (a postura apologética da contra-reforma tridentina) ou pré-Vaticano II (refugiando nas práticas medievais de piedade devocional)? Estaria a saída em ser pós-Vaticano II (entregues ao emocionalismo, entre a magia e o esoterismo) ou em aferrar-se à letra do Concílio, fechando-se a uma nova recepção do mesmo no novo contexto?
Por um lado, infelizmente, tal como no âmbito da sociedade, no seio da qual as diferentes hermenêuticas da crise da modernidade se configuram em projetos sociais distintos, também no âmbito eclesial, as diversas hermenêuticas do Vaticano II e da tradição latino-americana, configuram modelos de pastoral diferentes e, em muitos aspectos, antagônicos. Mas, por outro, felizmente, também estão presentes nos meios eclesiais, práticas pastorais que vão colocando as balizas de um novo paradigma de pastoral, centrado na integração de novas realidades e legítimas aspirações, que irrompem na história como “novos sinais dos tempos”.
1. Modelos de pastoral inconseqüentes com as mudanças atuais
De um olhar analítico sobre a situação da pastoral na Igreja hoje, podemos identificar pelo menos quatro modelos de pastoral inconseqüentes com o momento atual: a pastoral de conservação, que tende a desconhecer o atual processo de mudanças; a pastoral apologista, que tem medo delas; a pastoral secularista, que adota uma postura mimética e mercadológica diante elas; e a pastoral liberacionista, que teima em negá-las, achando que, na conjuntura atual, mudar é retroceder.
Na realidade, são modelos de pastoral sem futuro, pois estão na contramão da história, fechados aos novos sinais dos tempos e às interpelações do Espírito. Entretanto, é preciso ficar atentos e não adotar uma atitude desqualificadora dos mesmos, em bloco. Como todo acontecimento histórico é marcado pela ambigüidade, estes modelos também são portadores de elementos de um novo paradigma pastoral, congruente com as exigências das mudanças atuais.
Desconhecendo as mudanças: a pastoral de conservação (de cristandade)
A pastoral de conservação, assim denominada por Medellín (Med, 6,1) e lembrada por Aparecida (DAp 370), é o modelo de pastoral do regime de cristandade. Está ainda vigente na Igreja e existe há mais de mil anos, apesar de haver sido radicalmente superado pelo Concílio Vaticano II, há quase meio século. Funciona centralizado no padre e na paróquia e, no seio desta, na matriz. A paróquia, entretanto, desde o início da Idade Média, continua sendo, para a maioria dos católicos, o único espaço de contato com a Igreja.
A pastoral de conservação está à margem da sociedade atual, funcionando como que imune à renovação do Vaticano II, desconhecendo a modernidade, bem como a crise da modernidade e o processo de mudanças em curso. Tributário do dualismo agostiniano que opõe a “cidade de Deus” à “cidade dos homens”, o âmbito eclesial é o espaço do sagrado, refúgio dos cristãos frente à perdição do espaço profano do mundo, indiferente à salvação (extra eclesiam nulla salus).
Na pastoral de conservação, em sua configuração pré-tridentina, a prática da fé é de cunho devocional, centrada no culto aos santos e composta de procissões, romarias, milagres e promessas, práticas típicas do catolicismo popular medieval (um catolicismo “de muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”- Riolando Azzi). Já em sua configuração tridentina, a vivência cristã gira em torno do padre, baseada na recepção dos sacramentos e na observância dos mandamentos da Igreja.
Resquício de uma sociedade teocrática, assentada sobre o denominado “substrato católico” de uma cultura rural estática, pressupõe-se que os cristãos já estejam evangelizados, quando na realidade trata-se de católicos não convertidos, sem a experiência de um encontro pessoal com Jesus Cristo. Consequentemente, não há processos de iniciação cristã, catecumenato ou catequese permanente. A recepção dos sacramentos salva por si só, concebidos e acolhidos estes como “remédio” ou “vacina espiritual”. Em lugar da Bíblia, coloca-se na mão do povo o catecismo da Igreja. Em lugar de teologia para formar cristãos adultos, enquadra-se os fiéis na doutrina e nos dogmas da fé católica. A paróquia é territorial e, nela, em lugar de fiéis, há clientes que acorrem esporadicamente ao templo para receber certos benefícios espirituais fornecidos pelo clero. Na pastoral de conservação, o administrativo predomina sobre o pastoral; a sacramentalização sobre a evangelização; a quantidade sobre a qualidade; o pároco sobre o bispo; o padre sobre o leigo; o rural sobre o urbano; o pré-moderno sobre o moderno; a massa sobre a comunidade.
Temendo as mudanças: a pastoral apologista (de neocristandade)
A pastoral apologista é o modelo de pastoral do regime de neocristandade, que teve seu auge no século XIX, quando a Igreja pré-moderna jogou suas últimas cartas no confronto com a modernidade. Pouco tempo depois, ela será desautorizada em seus pressupostos pelo Concílio Vaticano II, que insere a Igreja em atitude de “diálogo e serviço” ao mundo. Nos dias atuais, com a crise da modernidade e a falta de referenciais seguros, a pastoral apologista volta com força, com ares de “revanche de Deus”, com muito dinheiro e poder, triunfalismo e visibilidade, guardiã da ortodoxia, da moral católica, da tradição.
A pastoral apologista assume a defesa da instituição católica diante de uma sociedade anti-clerical e a guarda das verdades da fé frente uma razão secularizante, que não reconhece senão o que pode ser comprovado pelas ciências. Ao desconstrucionismo dos metarrelatos e do relativismo reinante que geram vazio, incertezas e medo, contrapõe-se o “porto de certezas” da tradição religiosa e um elenco de verdades apoiadas numa racionalidade metafísica. Se a pastoral de conservação é pré-moderna, a pastoral apologista é anti-moderna. Neste modelo de Igreja e de pastoral, em lugar do Vaticano II, que se rendeu à modernidade, uma “revolução jacobina” antropocentrista, que em sua essência atenta contra Deus, apregoa-se a “volta ao fundamento”, guardado zelosamente pela tradição anti-moderna da era “piana” dos santos papas “Pios”, que acertadamente excomungaram em bloco a modernidade.
A pastoral apologista apóia-se numa “missão centrípeta”, a ser levada a cabo pela milícia dos cristãos, soldados de Cristo, a “legião” de leigos “mandatada” pelo clero, uma vez que este é rejeitado por uma sociedade anti-clerical. A missão consiste, numa atitude apologética e proselitista, em sair para fora da Igreja, com o objetivo de trazer de volta as “ovelhas desgarradas” para dentro dela. Numa atitude hostil frente ao mundo, cria seu próprio mundo, uma espécie de “sub-cultura eclesiástica”, no seio qual, pouco a pouco se sentirá a necessidade de vestir-se diferente, morar diferente, evitar os diferentes, conviver entre iguais, em típica mentalidade de seita ou gueto. A redogmatização da religião e o entrincheiramento identitário acabam sendo sua marca, apoiados na racionalidade pré-moderna agostiniana e tomista. Como se está em estado de guerra, qualquer crítica é intolerada, pois enfraquece a resistência. Diante da dúvida, a certeza da tradição e a obediência à autoridade monárquica, ícone da divindade na terra. A missa tridentina alimenta o imaginário de novos cruzados, no resgate da pré-modernidade perdida.
Padecendo as mudanças: a pastoral secularista (de pós-modernidade)
A pastoral secularista propõe-se responder às necessidades imediatas das pessoas no contexto atual, em sua grande maioria, órfãs de sociedade e de Igreja. É integrada por pessoas desencantadas com as promessas da modernidade, por “pós-modernos” em crise de identidade, pessoas machucadas, desesperançadas, em busca de auto-ajuda e habitadas por um sentimento de impotência diante dos inúmeros obstáculos a vencer, tanto no campo material como no plano físico e afetivo. Em suas fileiras, estão pessoas que querem ser felizes hoje, buscando solução a seus problemas concretos e apostando em saídas providencialistas e imediatas. Nestes meios, há um encolhimento da utopia no momentâneo.
Em meio às turbulências de nosso tempo, dado que o passado perdeu relevância e o futuro é incerto, o corpo é a referência da realidade presente, deixando-se levar pelas sensações e professando uma espécie de “religião do corpo”. Na medida em que Deus quer a salvação a partir do corpo, esta religiosidade colada à materialidade da vida, pode ser porta de entrada para a religião, mas, caso se reduza a isso, é certamente porta de saída.
A pastoral secularista vem na esteira de uma religiosidade eclética e difusa, uma espécie de neopaganismo imanentista, que confunde salvação com prosperidade material, saúde física e realização afetiva. É a religião a la carte: Deus como objeto de desejos pessoais, solo fértil para os mercadores da boa fé, no seio do atual próspero e rentável mercado do religioso. A religião já é o produto mais rentável do capitalismo.
No seio da pastoral secularista, há um deslocamento da militância para a mística na esfera da subjetividade individual, do profético ao terapêutico e do ético ao estético, contribuindo para o surgimento de “comunidades invisíveis”, composta por “cristãos sem Igreja”, sem vínculos comunitários. Há uma internalização das decisões na esfera da subjetividade individual, esvaziando as instituições, inclusive a instituição eclesial, composta também por muitos membros sem espírito de pertença.
Neste contexto, a mídia contribui para a banalização da religião, não só reduzindo-a à esfera privada, como a um espetáculo para entreter o público. Trata-se de uma “estetização presentista”, propiciadora de sensações “in-transcendentes”, espelho das imagens da imanência. Também a religião passa a ser consumista, centrada no indivíduo e na degustação do sagrado, entre a magia e o esoterismo.
Negando as mudanças: a pastoral liberacionista (de encantamento com a modernidade)
A pastoral liberacionista se reivindica da renovação do Concílio Vaticano II e da profética tradição latino-americana, a resposta mais avalizada à crítica da religião como alienação ou ópio do povo. Não quer perder de vista a indissociável conversão pessoal e das estruturas, que exige a militância dos cristãos também na esfera política, a partir da opção preferencial pelos pobres. Também não quer deixar a parceria com os movimentos sociais, que permitiu avanços nas políticas públicas de inclusão de amplos segmentos da população, historicamente tratados como supérfluos e descartáveis.
Com a crise da modernidade e, em sua esteira, a crise das utopias, a fragmentação do tecido social, a crise da democracia representativa, dos ideais comunitários e o surgimento de novos rostos da pobreza, a pastoral liberacionista sofreu um grande revés. De repente, viu-se sem as mediações capazes de fazer aterrissar os ideais coletivos em projetos históricos concretos. Entretanto, apesar disso, em meio à perplexidade do presente, em lugar de tirar lições da crise e buscar novas mediações capazes de manter vivos os ideais do evangelho social, a pastoral liberacionista tende a minimizar ou mesmo a negar as transformações atuais, apostando tratar-se de uma crise passageira, sem maiores conseqüências para a ação transformadora da Igreja.
E como se nada ou muito pouco tivesse acontecido em meio aos escombros do Muro de Berlim e das Torres Gêmeas, continua-se priorizando, quando não com exclusividade, a promoção de mudanças estruturais e a atuação no âmbito político e social. Qualquer mudança é retrocesso. Deixa-se em segundo plano as questões mais ligadas à esfera da pessoa, de sua subjetividade, à realização pessoal, autonomia, à dimensão sabática da existência, à experiência pessoal do sagrado, tidas como preocupações burguesas. Pastoral é, sobretudo, pastoral social, em estreita relação com as lutas sociais e em parceria com os segmentos da sociedade civil, empenhados na conquista das causas populares, com as mesmas mediações de sempre. O outro continua sendo visto como um mero imperativo ético, mais instância de expiação do que de gratuidade, mais “mesmidade” do que alteridade. Mudar as mediações é perder os ideais.
2. Balizas de um novo paradigma pastoral em tempos de mudanças
Por mais duras e desconcertantes que possam ser as mudanças no seio de uma sociedade em profundas transformações, como Igreja, não estamos condenados ao pragmatismo do cotidiano, nem a repetir o passado. Em tempos de travessia e de criação de novas respostas a novas perguntas, de nada servem saídas pastorais providencialistas ou modelos nostálgicos restauradores de um passado sem retorno. Em meio à ambigüidade dos acontecimentos, é preciso ficar atentos às interpelações do Espírito e, sobretudo, não satanizar as práticas proféticas que “minorias abraâmicas” vão cravando como cunhas, nas brechas de modelos sociais e eclesiais obsoletos. São respostas ainda frágeis, incapazes de compor um modelo estável e satisfatório, mas suficientes para sinalizar algumas balizas de um novo paradigma pastoral em tempos de mudança.
Uma pastoral que se desvencilhe do modelo de cristandade
Enquanto a sociedade, em meio a profundas mudanças, avança dentro do processo de construção da modernidade, redimensionando e ampliando seu projeto, em contra-partida, a Igreja, apesar da renovação do Vaticano II, ainda não conseguiu se desvencilhar da cristandade. Em tempos de turbulências, que geram insegurança e medo, refugiar-se nas velhas seguranças do passado, é armar um guarda-chuva que ficará obsoleto logo que a tempestade passar. Voltar à cristandade ou à neocristandade, é enclausurar a Igreja em um castelo e suspender as pontes elevadiças que a conectam com o mundo de hoje, reduzindo-a a um gueto ou confinado-a numa subcultura eclesiástica.
Um novo paradigma pastoral para um tempo de mudanças, capaz de interagir com o mundo de hoje, acena para passagem: da união entre trono e altar ao respeito pela autonomia do temporal, superando todo tipo de integrismo; dos dualismos corpo-alma, material-espiritual, sagrado-profano a uma antropologia unitária, que une evangelização e promoção humana; da missão entendida como implantação da Igreja à encarnação do Evangelho, na diversidade das culturas, que gera comunidades eclesiais com rosto próprio; da mera recepção dos sacramentos a processos de iniciação cristã de estilo catecumenal; do ritualismo mágico a uma catequese mistagógica; da Igreja-massa a uma Igreja de pequenas comunidades acolhedoras e aconchegantes; da centralização na matriz paroquial a uma Igreja rede de comunidade-de-comunidades; do aumento do tamanho dos templos à multiplicação de pequenas comunidades; de comunidades territoriais a comunidades por eleição e afeto; do monopólio clerical ao protagonismo dos leigos, em especial, das mulheres; do catecismo à Bíblia; da doutrinação à formação teológico-pastoral permanente, etc.
Uma pastoral de “volta às fontes” e não de “volta ao fundamento”
O Concílio Vaticano II, superando a cristandade, que havia se distanciado do modelo eclesial normativo neotestamentário, se propôs fazer uma “volta às fontes” bíblicas e patrísticas (ad rimini fontes) e, na fidelidade a elas, resituar-se no contexto da modernidade. Hoje, os segmentos eclesiais alinhados à neocristandade propugnam pela “volta ao fundamento”, que não é volta às fontes bíblicas e patrísticas, mas ao agostinismo e ao tomismo, à tradição tridentina dos “Papas Pios”, à metafísica pré-moderna, aos manuais e catecismos apologéticos, ao Missal de Pio V, enfim, a uma fé “porto de certezas”. Mas, como advertia Santo Agostinho, “a fé está mais próxima da dúvida do que da evidência”. “Volta às fontes” significa não perder de vista o espírito e o carisma da experiência originária, jamais esgotados por qualquer mediação histórica. Já “volta ao fundamento”, é agarrar-se a determinada configuração da tradição, absolutizando as mediações em relação aos fins e gerando fundamentalismos.
Um novo paradigma pastoral, que desvencilhe a Igreja do modelo de neocristandade, acena para a passagem: da volta ao passado como refúgio a revisitar o passado como memória que nos permite resituar no presente; de uma visão da pós-modernidade como relativista a uma relativização de toda verdade identificada; de uma Igreja possuidora da verdade a uma Igreja que se deixa possuir por ela; de uma racionalidade pré-moderna, dedutiva e essencialista a uma racionalidade histórico-existencial, capaz de colocar a Igreja e a teologia em diálogo com o mundo de hoje; da apologia a uma Igreja em diálogo e serviço ao mundo; dos manuais e catecismos à pesquisa teológica, em diálogo inter e transdisciplinar; do exclusivismo católico ao diálogo ecumênico e inter-religioso; do sagrado que separa do profano à santificação de tudo e de todos; de um Deus todo poderoso, que esmaga os inimigos, a um Deus Amor, impotente diante da liberdade humana, que salva pela Cruz, a Vítima que perdoa, etc.
Uma pastoral liberta do passado, mas guardando uma preciosa herança
Em tempos de mudanças e de avanços no seio do projeto civilizacional moderno, a Igreja precisa caminhar para frente. Mas, ao virar páginas caducas de sua história, não pode colocar entre elas o Concílio Vaticano II e a tradição latino-americana, de Medellín a Aparecida. Pois, eles foram eventos, resultado de penosos processos, que levaram a Igreja a passar da cristandade à modernidade. E como a modernidade, apesar de sua crise, continua vigente em seus valores e conquistas, também a renovação conciliar, em suas intuições básicas e eixos fundamentais, continua relevante para os dias de hoje. O Concílio Vaticano II fez uma ruptura radical com o eclesiocentrismo medieval e com o clericalismo e a romanização do catolicismo tridentino. Elaborou uma nova auto-compreensão da Igreja, em diálogo com o mundo moderno e em espírito de serviço, especialmente aos mais pobres.
Em relação ao Vaticano II, um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudanças acena para se guardar: a distinção entre Igreja e Reino de Deus, que é mais amplo do que a Igreja, do qual, ela é uma de suas mediações, ainda que privilegiada; em cada Igreja Local, porção e não parcela do Povo de Deus, está a Igreja toda, ainda que não seja toda a Igreja (não há uma suposta Igreja universal, nem anterior e nem exterior às Igrejas Locais); o primado da Palavra na vida e na missão da Igreja, que existe para evangelizar e não simplesmente para sacramentalizar; a afirmação da base laical da Igreja, composta por um único gênero de cristãos, constituído por um povo todo ele profético, sacerdotal e régio; a unidade da fé tecida em torno ao sensus fidei de todo o Povo de Deus, no seio do qual se insere também o magistério; a Igreja, não é deste mundo, mas está no mundo e existe para a salvação do mundo, em espírito de diálogo e serviço; a reforma litúrgica, que recolhe a nova eclesiologia e resgata a centralidade do mistério pascal, superando o culto sacrificialista; etc.
E, da tradição latino-americana, um novo paradigma pastoral nestes tempos de mudança, acena para se guardar: de Medellín (1968) - a evangélica opção pelos pobres; uma evangelização libertadora, que aterrissa a escatologia na história; a simultaneidade da conversão pessoal e das estruturas como condição à eficácia do amor, num mundo marcado pela injustiça estrutural; um novo modelo de Igreja – pobre e em pequenas comunidades – como sinal e instrumento do Reino de Deus no coração da história; a necessidade de uma reflexão teológica articulada com as práticas, em especial dos mais pobres, etc.; de Puebla (1979) – a importância de uma correta concepção de Jesus Cristo, de Igreja e do ser humano para uma autêntica evangelização; a prioridade da atenção aos jovens; a valorização da religiosidade popular, uma importante forma de inculturação da fé, etc.; de Santo Domingo (1992) - a santidade, como primeira vocação do cristão e primeiro meio de evangelização; o protagonismo dos leigos na evangelização; a evangelização enquanto inculturação do evangelho, no respeito à liberdade das pessoas e de sua identidade cultural, etc.; de Aparecida (2007) – não perder de vista os pobres, hoje, supérfluos e descartáveis; uma Igreja toda ela em estado permanente de missão; a missão como irradiação do Evangelho e não proselitismo; o protagonismo das mulheres na Igreja; chegar às pessoas, através de processos de iniciação cristã, etc.
Uma pastoral que faça do ser humano o caminho da Igreja
Consequente com o mistério da Encarnação do Verbo, o cristianismo não propõe a seus adeptos e à humanidade, nada mais do que ser verdadeiramente humanos, humanos em plenitude. Nisto consiste a salvação em Jesus Cristo. A vida em plenitude resume a missão de Jesus de Nazaré: “eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Pareceu, então, evidente a Santo Irineu de Lion, na aurora do cristianismo, que a “a glória de Deus é o ser humano pleno de vida” (gloria Dei homo vivens). João Paulo II, alinhado a esta tradição, em Redemptor Hominis e em Centesimus Annus tira as conseqüências para a ação evangelizadora: “o ser humano é o caminho da Igreja” (RH 13, CA 53). Jesus é o caminho da salvação; o caminho da Igreja é o ser humano, pois ela existe para o serviço da vida plena para todos, a única razão e fim da obra de Jesus.
Por isso, um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudança acena hoje, por um lado, para a Igreja descentrar-se de suas questões internas e sintonizar-se com as grandes aspirações da humanidade. A proposta cristã, enquanto mediação de salvação para todo o gênero humano, descentra a Igreja de si mesma e lança-a numa missão não exclusiva. O espaço intra-eclesial não esgota a missão da Igreja. Deus quer salvar a todos e, a Igreja, como mediação privilegiada, precisa ser a Igreja de todos, sobretudo daqueles que não são Igreja. Por outro lado, fazer do ser humano o caminho da Igreja, implica superar os paradigmas essencialistas e metafísicos da pré-modernidade, que olham para o ser humano de modo genérico e abstrato, desvinculado da concretude da história e das contradições de seu contexto sócio-cultural. Sobretudo a Igreja na América Latina trouxe à tona a exigência de desvencilhar-se, tanto no âmbito social como eclesial, de óticas e condutas hora de submissão, hora de rejeição ou aniquilamento do outro, a lógica de violência que caracteriza nossa sociedade.
Consequentemente, um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudança, que faça do ser humano o caminho da Igreja, acena, antes de tudo por uma Igreja samaritana, companheira de caminho de toda a humanidade, especialmente dos que sofrem. Uma Igreja acolhedora, solidária, movida pela compaixão, mas também profética, que denuncia os mecanismos de opressão e exclusão e toma a defesa das vítimas, que clamam por justiça, nos diferentes rostos do complexo fenômeno da pobreza. Os mártires das causas sociais são a expressão mais genuína da opção pelos pobres, assumindo o conflito, para além de uma caridade assistencial, que humilha o excluído e alimenta o cinismo dos satisfeitos.
Uma pastoral pautada pela gratuidade e o respeito à alteridade
Um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudanças acena para a Igreja pautar-se pela gratuidade e a alteridade. São duas realidades postas em evidência pela modernidade tardia, que a pastoral está também desafiada a integrar e contribuir com a superação da lógica de submissão, rejeição ou aniquilamento do outro ou do diferente.
Em primeiro lugar, dado que nosso mundo é cada vez mais plural e diversificado, apresenta-se a exigência de aprender a se enriquecer com a diversidade e não ver detrás do diferente um herege ou um inimigo em potencial. Para isso, o pluralismo, mais do que mera abertura ao outro, precisa ser um pressuposto, pois antes de se falar de “sujeito”, dado que ele é sempre plural, é necessário referir-se à alteridade. Em segundo lugar, está a exigência de ver o outro não como um imperativo ético ou instância de expiação, mas como dimensão sabática da existência, horizonte de gratuidade, de cujo encontro, numa relação dialógica e horizontal, ‘eu’ e ‘tu’ se enriquecem mutuamente.
Consequentemente, na evangelização, não há destinatários, mas interlocutores. Como Deus não se impõe, mas se propõe, a evangelização só começa quando o outro responde à interpelação do Evangelho e, só se dá, quando o outro, em sua liberdade e autonomia, acolhe a Mensagem. E como o “outro”, na realidade, são “outros”, diversos e diferentes em culturas e religiões, evangelizar implica diálogo inter-cultural e inter-religioso, implica inculturação do Evangelho. Em resumo, um autêntico processo de evangelização é sempre o resultado da cumplicidade de duas liberdades: a liberdade de Deus em comunicar-se mediado pelo evangelizador e a liberdade do interlocutor em acolher a proposta do Evangelho.
Uma pastoral que faça do presente um tempo messiânico
Um novo paradigma pastoral, em sintonia com o atual contexto de mudanças, acena para a Igreja tirar as conseqüências da crise das utopias, concebidas no seio da modernidade, por um lado, como um fim pré-determinado ao qual a história necessariamente convergiria e, por outro, como uma dilatação indeterminada do futuro. Ora, se há um lixo da história, o primeiro a ser jogado neste lixo é nossa própria concepção de história. Trata-se do tempo concebido como chronos, um processo linear, no qual, os fins que se perseguem se encontram no fim do processo, no fim dos tempos ou, pior, só na meta-história.
A crise da modernidade pôs em evidência o valor e a urgência do presente, do momentâneo, do agora, provocando um encolhimento da utopia no hoje da história. É outra noção de tempo, não como chronos, mas como kairós, no qual, os fins que se perseguem, se são verdadeiros, precisam ir sendo experimentados no caminho, em experiências de plenitude em meio à precariedade do presente, em momentos de eternidade no tempo. Do contrário, não passa de alienação, de uma esperança vazia, de escapismo da história, de um horizonte sacrificial e enganador.
A pastoral, hoje, também ela está desafiada a fazer do presente um tempo messiânico – um kairós. O “ainda não” da esperança cristã precisa tocar o “já” de nosso momento presente, na vida pessoal e social do cotidiano. O Reino de Deus só é salvação, se for salvação para nós hoje, experimentado e tocado em vivências concretas, mesmo em meio às vicissitudes da vida. São destes momentos de “Tabor”, de transfiguração pontual do real no cotidiano, destes momentos messiânicos, que a esperança cristã se alimenta, pois a salvação é um fim que se dá no caminho.
Uma pastoral centrada na Palavra e animada pela Bíblia
O Concílio de Trento havia inibido o acesso dos cristãos ao texto bíblico, enfatizando a recepção dos sacramentos. Naquele contexto, fazer pastoral significava sacramentalizar, normalmente, pessoas não evangelizadas, sem processo de iniciação cristã e conversão pessoal. E, para sacramentalizar, em lugar da Bíblia, se usava o catecismo, pois catequese consistia em conhecer a doutrina cristã.
No contexto da renovação conciliar do Vaticano II, Evangelii Nuntiandi afirma que antes de sacramentalizar é preciso evangelizar, isto é, levar os interlocutores a se conectarem com Jesus de Nazaré e a Boa Nova do Reino de Deus, inaugurado e anunciado por Ele. E que “desconhecer a Escritura é desconhecer a Cristo” (DV 25). Em consequência, o Vaticano II voltou a colocar a Bíblia no centro da vida cristã, consciente de que os membros de nossas comunidades eclesiais, só são verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, se estiverem em condições de levar a proposta da Palavra de Deus aos seus irmãos; e só estarão aptos para isso, quando conhecerem e acolherem a Palavra, fazendo-a vida em sua vida.
Um novo paradigma pastoral para estes tempos de travessia acena para se contemplar a centralidade da Palavra de Deus na vida da Igreja. Para isso, é necessário que a Palavra seja a seiva que nutre a globalidade da vida pessoal e eclesial, os serviços, os organismos e as estruturas, desde dentro. Como diz o Concílio, “toda a vida e ação da Igreja precisa alimentar-se e reger-se com a Sagrada Escritura” (DV 21). Assim, a denominada “animação bíblica da pastoral” não pode ser uma pastoral a mais ao lado de outras, mas precisa assumir sua função própria dentro de cada uma das etapas essenciais do processo evangelizador. Como lembra a Dei Verbum, a Palavra de Deus “precisa animar as três vertentes da vida e ação eclesial: a profecia, a liturgia e a diaconia” (DV 21). Cabe, pois, à animação bíblica da pastoral, tornar presente não apenas a Bíblia, mas a “dimensão bíblico-catequética” de toda e qualquer ação eclesial.
Consequentemente, a animação bíblica da pastoral precisa situar-se no momento mais importante da formação cristã, no processo de iniciação, velando para que os cristãos sejam introduzidos, da maneira mais eficaz possível, no conhecimento e na vivência da Palavra, na vida pessoal, eclesial e social. A iniciação cristã inclui também a introdução na vida comunitária, preferencialmente em pequenas comunidades, a exemplo das CEBs, nas quais se dá o momento privilegiado para a vivência da Palavra e a maturidade de uma Igreja missionária.
Esta maturidade missionária implica que a comunidade dos iniciados, por sua vez, se dê a tarefa de iniciar a outros. É precisamente aqui que a “animação bíblica da pastoral” precisa promover uma “pastoral bíblica”, ou seja, a criação dos serviços e das estruturas necessárias para a animação bíblica de toda a vida eclesial: difusão do texto da Bíblia; formação para uma adequada interpretação do texto através de cursos e escolas bíblicas; criação de Círculos Bíblicos; promoção de encontros e congressos; a organização de comissões, comitês, organismos capazes de promover a animação bíblica, etc. Isso só será possível se a animação bíblica da pastoral estiver inserida na pastoral orgânica e de conjunto e se esta for a promotora da responsabilidade de todos em fazer da Palavra a seiva que nutre, por dentro, todas as iniciativas pastorais.
Para concluir
Afirma Medellín, que todo compromisso pastoral brota de um discernimento da realidade, pois a finalidade da evangelização é impregnar a história dos mistérios do Reino de Deus e transfigurar em Cristo tudo o que está desfigurado, por tantos sinais de morte. Na medida em que a Palavra de Deus quer ser salvação para nós hoje, não há fidelidade ao Evangelho sem fidelidade à realidade.
Nosso atual contexto de profundas mudanças, em meio às ambigüidades dos acontecimentos, é também lugar de revelação de novos sinais dos tempos, interpelações do Espírito, que clamam por uma renovação das mediações eclesiais que mantém viva, na concretude da história, a obra redentora de Jesus Cristo. É preciso, pois, ter a coragem de mudar a roupagem, abandonar formas de ação e estruturas obsoletas, para que a Mensagem seja para nós, nova em cada manhã.
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