JOÃO XXIII E FRANCISCO, UMA PARÁBOLA JUBILAR
Contemplando a linha
histórica entre 1963 e 2013, podemos observar um Jubileu de 50 anos
iniciado com a morte de João XXIII, completado por Francisco e, no
centro do período, os pontificados de Paulo VI, João Paulo I, João Paulo
II e Bento XVI. É verdade que os papas se sucedem e não se substituem, o
que revela a segurança da história da Igreja, mas, há uma linha de
continuidade nesses homens: a santidade. João XXIII e João Paulo
II serão canonizados e logo haverá a beatificação de Paulo VI, de João
Paulo I e um ancião, Bento XVI, leva vida contemplativa no mosteiro
Mater Ecclesiae, dentro do Vaticano. A velha e enrugada Igreja cada vez
mais se torna esposa sem ruga e sem mancha, cheia da beleza própria dos
santos. Nós, que estamos acostumados a contemplar os papas no Trono
papal, necessitamos aprender a contempla-los de joelhos, rosário nas
mãos, confiantes no Espírito que fala às Igrejas. Uma instituição cujos
Cardeais eleitores escolhem homens de tal envergadura somente pode gozar
de boa saúde.
Mas, que linha marca esse Jubileu e esses
homens João e Francisco? Evidente que navegam na barca do Concílio e
seu espírito lembra algo meio esquecido: uma Igreja pobre para os
pobres, pobre nos meios. João indicou esse caminho e Francisco torna-o
uma avenida.
JOÃO XXIII
Ângelo José Roncalli (1881-1963)
era filho de pobres agricultores, devoto de Nossa Senhora, estudioso.
Como bom seminarista, foi premiado com bolsa de estudos no Pontifício
Seminário Romano em Roma, onde foi ordenado sacerdote em 1904. No
primeiro dia de seminarista escreveu um Diário, iniciado com um
pequeno programa de santidade que o acompanhou até os últimos dias: nele
está a história de sua alma serena e humilde, nunca perturbada nem
mesmo nos acontecimentos históricos que protagonizou. Após 20 anos como
secretário do bispo de Bérgamo Radini-Tedeschi, tempo em que lecionou no
seminário e foi capelão militar na grande guerra de 1914, em 1921 Bento
XV nomeou-o presidente nacional da Obra da Propagação da Fé, quando
contribuiu na redação do motu próprio de Pio XI “Romanorum pontificum”,
carta magna da cooperação missionária.
Em 1925, Pio XI o nomeia Visitador
apostólico na Bulgária e foi ordenado bispo escolhendo o lema
“Obediência e Paz”. Era sua missão reorganizar a Igreja de rito oriental
e latino naquele país e resolver conflitos de jurisdições episcopais.
Um trabalho para alguns meses, se dizia, e esses alguns meses foram 10
anos. Julgou que o tinham esquecido, mas, obedientia et pax, mergulhou
no trabalho: tornou-se amigo do Rei Boris III, do clero ortodoxo, do
povo búlgaro, de maioria ortodoxa, do qual aprendeu a língua. Seu amor
pelos pobres grangeou-lhe o afeto geral.
Dez anos depois, em 1934 foi nomeado
Delegado apostólico na Turquia e na Grécia, mergulhando no mundo
ortodoxo e muçulmano. Cinco anos depois explode a segunda grande Guerra,
e Roncalli teve ocasião de trabalhar em favor das vítimas doentes e
famintas e, ponto delicado, em favor dos Judeus que, aos milhares,
fugiam dos países europeus dominados pelo nazismo alemão. Passo
fundamental foi sua amizade com o embaixador alemão Franz von Papen que
lhe fornecia dinheiro, roupas, alimento e remédio repassados aos pobres
judeus. Segundo o embaixador, com sua dedicação, amizade, conseguiu
salvar 24 mil judeus, cujo destino seriam os campos de concentração. Sua
amizade com o povo turco mereceu-lhe o apelido de “Papa turco”.
Nomeado Núncio apostólico em Paris, em
1944, continuou seu trabalho pela salvação dos judeus, servindo-se dos
bons préstimos do embaixador sueco. Conseguiu que o rei Boris fizesse
retornar um trem carregado de judeus que eram conduzidos ao extermínio.
Roncalli expediu falsos documentos de identidade, falsos certificados de
batismo e de imigração para a Palestina. De Paris sua ação estendeu-se à
Hungria, Bulgária e Eslováquia, dedicação tão reconhecida que lhe
valeu, em 2000, ser incluído por Israel como “justo entre as nações”. Há
cálculos que afirmam terem sido salvos perto de 80 mil judeus, com
esses falsos certificados de batismo e de identidade expedidos por
organizações católicas com o apoio do Núncio Roncalli.
Terminada a Guerra em 1945, o futuro Papa
encontrou o mau humor de Paris, que se sentia humilhada por um Núncio
tão simplório, baixinho e gordo, que apelidaram de “saco de macarrão”.
Charles de Gaulle, libertador da França, exigiu-lhe a destituição da
maioria dos bispos franceses que tinha colaborado com o regime de Vichy.
Com seu talento, Ângelo Roncalli conseguiu reduzir o número de 25 para
três bispos.
Em 1953, Pio XII criou-o Cardeal e o
nomeou Patriarca de Veneza. Padre há quase 50 anos, finalmente estava à
frente de um rebanho católico. Continuando o ministério da
reconciliação, enviou mensagem aos socialistas reunidos em Congresso.
Seu coração humano e cristão não perguntava a religião ou o partido:
amava instintivamente e por todos era amado.
O velho Patriarca estava com 77 anos,
merecendo um digno descanso e, supresa, é eleito Papa em 28 de outubro
de 1958, sucedendo ao único, inimitável, inswubstituível Pio XII. Para
os analistas desse Conclave, Roncalli tinha uma única credencial para
ser eleito: era velho! Não iria dar trabalho, não mexeria com o status
da Igreja pacelliana. Mas, fatal engano para os romanos: ainda no
conclave criou um cardeal, em 4 anos criou mais 52, em 1960 os primeiros
cardeais africano, japonês e filipino, em 1962 canonizou o primeiro
santo negro, Martinho de Lima.
No primeiro Natal romano visitou as
crianças do Hospital Menino Jesus que o confundiram com Papai Noel, no
dia 26 os prisioneiros do Regina Coeli (Já que vocês não podem me
visitar, venho eu visita-los), aos quais falou do amor de Deus. Não
faltaram os fioretti, como ao visitar um padre doente no hospital
Espírito Santo e ao bater à porta da Superiora ela, emocionada, se
apresentou como Madre Superiora do Espírito Santo e teve a resposta do
Papa: “Abençoada!. Que bela carreira! Eu sou apenas o servo dos servos
de Deus”.
Contam-se 152 saídas (escapadas) do Papa
fora dos muros vaticanos, incluindo a viagem de trem até Loreto e Assis.
Necessitava do contato com o povo, amava Roma com suas fontes e praças
que gostava de apreciar com um binóculo.
Inesperadamente, João XXIII era um papa
radical, isto é, amava como Cristo amou, sem mediações religiosas ou
políticas. Tinha aprendido a amar os muçulmanos, os judeus, era amigo de
protestantes, ortodoxos, recebeu visita do Arcebispo de Cantuária, de
um ateu comunista, o sobrinho de Kruschev, para escândalo dos puros que
sentiram a profanação do sagrado espaço vaticano. A pedido de judeus, na
Sexta-feira santa de 1959, suprimiu da liturgia a invocação “pro
perfidis judaeis”. Não havia, nele, projetos de ecumenismo, diálogo
interreligioso e sim, a acolhida sem reservas.
Com apenas três meses de pontificado, a
coroa de seu ministério manifestou-se em 25 de janeiro de 1959: convocou
os 17 cardeais presentes ao Oitavário em São Paulo fora dos Muros para
um Consistório na sacristia, em seguida. Foi uma surpresa para a Igreja e
para o mundo, mas não um improviso. Trocara idéias com seu Secretário
de Estado Domenico Tardini que achou um despropósito o projeto afirmando
que o Direito Canônico previa que cada diocese deveria realizar um
Sínodo a cada 10 anos e Roma nunca tinha feito o seu. “Faremos um
Sínodo, então”, foi a resposta do Papa.
E assim, naquele dia 25 de janeiro de
1959, no Concistório realizado na Sala capitular da Abadia de São Paulo
anunciou aos 17 Cardeais que os convocara para anunciar três medidas:
convocar um Sínodo Romano, um Concílio Ecumênico e a atualização do
Código do Direito Canônico.
Como João XXIII era um velhote, os
Cardeais pensaram que tudo seria num prazo de 10 anos e tudo ficaria
nisso. Engano: era para já. O Sínodo Romano aconteceu de 24 a 30 de
janeiro de 1960. Viveu a “solidão institucional”, nas palavras do
Cardeal Lercaro. A Cúria fez o possível para não colaborar. Sofreu o
boicote do l’Osservatore Romano que do Concílio deu notícia num pequeno
requadro e, não fossem os jornais do mundo a difundirem o projeto,
parecia ficar por isso. João XXIII sofreu o mesmo boicote de seu famoso
“Discurso da Lua”, belíssimo improviso na noite de abertura do Concílio,
que foi publicado com censura. Somente nesse ano de 2013, Francisco
ordenou que fosse publicado na íntegra!
O Papa criou e nomeou as Comissões, deu
impulso aos trabalhos, consultou todos os bispos e, no dia 25 de
dezembro de 1961, através da bula papal “Humanae salutis” convocou o
Concílio Ecumênico do Vaticano II, inaugurado em 11 de outubro de 1962.
Papa Roncalli continuou no ministério da
reconciliação humana e da paz, tendo atuação fundamental na crise dos
mísseis de Cuba que, em outubro de 1962 quase precipitou o mundo num
holocausto nuclear. Fruto dessa horrenda perspectiva, em abril de 1963
publica a Encíclica “Pacem in Terris”, primeiro documento papal dirigido
a todos os homens de boa vontade.
Em setembro de 1962 surgiram os sinais de
câncer, doença que o fez sofrer muito e o levou ao túmulo. Foi
padecendo fisicamente que abriu o Concílio Ecumênico do Vaticano II em
11 de outubro de 1962. O mundo tinha a sensação real de um pai comum,
conhecido e amado como o Papa Bom. E muito chorou a humanidade no dia 3
de junho de 1963, quando o perdeu. Suas últimas palavras foram ao fiel
secretário Loris Capovilla: “Por que chorar? Esse é um momento de
alegria, um momento de glória”.
A Igreja católica não era mais a mesma
instituição bimilenar, monolítica, voltada para suas seguranças
internas. Era Mater et Magistra em projeto irrefreável de ser serva do
mundo.
FRANCISCO
Cinqüenta anos depois, no dia 13
de março de 2013, foi eleito papa o Cardeal argentino Jorge Bergoglio. O
primeiro jesuíta e o primeiro latinoamericano. Da mesma idade que João
XXIII, porém, eleito pelo consenso no Conclave a fim de que realizasse
reformas estruturais na Cúria e na Igreja. Escolheu o nome Francisco
referindo-se ao Pobre de Assis. Em sua apresentação no Balcão da
Basílica de São Pedro conquistou Roma e o mundo. Apresentou-se como
Bispo de Roma. Não viera da intelectualidade ou da diplomacia, e sim,
das favelas de Buenos Aires, do mundo dos pobres.
Cercou-se de Oito Sábios, Cardeais
representando os Continentes, para assessora-lo. Francisco é amoroso,
abraça cada pessoa como se estivesse sozinho com ela, visitou a prisão
de Roma, as crianças do Hospital Menino Jesus, visitou Assis, onde pediu
a graça da humildade para ele e para a Igreja. Celebrou o Lava-pés com
meninos de rua, o aniversário com mendigos, passou a residir na Casa
Santa Marta.
Em 8 de julho viajou a Lampedusa, porta
de entrada e cemitério, na Itália, dos milhares de migrantes fugidos da
África e Oriente Médio o que, para muitos, foi a inauguração de seu
Pontificado. Sua homilia foi um grito com duas perguntas: “Adão, onde
estás? Caim, onde está teu irmão?”. Pediu a graça de chorar pela nossa
indiferença, pela crueldade que há no mundo, pelas decisões
socioeconômiccas que provocam deslocamentos de povos, sofrimento, morte,
e pergunta: “Quem chorou? Quem chorou hoje no mundo?”. E conclui:
“Senhor, nesta Liturgia, que é uma liturgia de penitência, pedimos
perdão pela indiferença por tantos irmãos e irmãs; pedimo-vos perdão,
Pai, por quem se acomodou, e se fechou no seu próprio bem-estar que
leva à anestesia do coração; pedimo-vos perdão por aqueles que, com as
suas decisões a nível mundial, criaram situações que conduzem a estes
dramas. Perdão, Senhor! Senhor, fazei que hoje ouçamos também as tuas
perguntas: “Adão, onde estás? Onde está o sangue do teu irmão?”.
Proclamando um jejum universal pela paz,
colocou-se do lado o povo sírio ameaçado de uma invasão norte-americana.
Francisco é um papa que chora cada doente, cada criança ou doente
sofrendo, chora a morte de cada pessoa como de um filho. Assim como o
velhinho João XXIII inaugurou um caminho sem retorno para uma Igreja
Mãe, povo de Deus em diálogo com todos, Francisco percorre esse caminho
de forma radical. Ele é amoroso, amigo, doce, mas, não se alimentem
ilusões saudosistas, ele sabe o que quer: uma Igreja que se descobre
nascendo na gruta de Belém, despojada, que possa anunciar com coerência o
Evangelho do amor e da reconciliação.
João e Francisco, símbolos de uma Igreja alegre, calorosa, anunciando a alegria do amor de Deus, o Pai.
Pe. José Artulino Besen
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