Vou apresentar alguns comentários,
salientando os vários pontos que merecem mais atenção. É importante compreender
que o comentário será mais teológico que exegético. Ei-los:
(1) “No terceiro dia, houve
núpcias em Caná da Galiléia”. São João inicia seu evangelho narrando,
dia após dia, a primeira semana do ministério público de Jesus (cf. 1,29.35.43;
2,1). Com isso ele já quer transmitir uma idéia importante: Jesus vem para
recriar todas as coisas. A sua ação recapitula a ação do Pai ao criar tudo.
Neste sentido, vale a pena recordar a primeira leitura da Vigília da Páscoa - a
criação - e a oração que a Igreja faz logo após a leitura: “Ó Deus, admirável
na criação do ser humano, e mais admirável ainda na sua redenção...”Depois,
o Evangelista monta a narração de tal modo a terminar esta semana inaugural com
a expressão “terceiro dia”. Oral, para os cristãos, “terceiro dia” tem um
sentido claro: é o Dia da Ressurreição! Pois bem, “no Terceiro dia
houve núpcias”... que núpcias? As de Cristo com a Igreja: “Estão
para realizarem-se as núpcias do Cordeiro, e sua esposa (a Igreja) já está
pronta: concederam-lhe vestir-se com linho puro, resplandecente” (Ap 19,7s).
Então, narrando as bodas de Caná o Evangelista está pensando na ressurreição,
quando Cristo desposou sua Igreja.
(2) É interessante também observar que
o texto inicia com a ordem natural: a Mãe de Jesus (v. 1), Jesus (v. 2) e seus
discípulos (v. 2). Ao final, veremos que esta ordem será invertida: Jesus, sua
Mãe, seus irmãos e seus discípulos (v. 12). Depois que Jesus “manifestou
a sua glória” (v. 11), a ordem é invertida e ele é nomeado em primeiro
lugar.
(3) O vinho que faltou no casamento tem
um significado importante. O casamento é símbolo da aliança de Deus com
Israel: “Como um jovem desposa uma virgem, assim te desposará o teu
Edificador. Como a alegria do noivo pela noiva, tal será a alegria que o teu
Deus sentirá em ti” (Is 62,5); “Meu Amado é meu e eu sou dele” (Ct 2,16; cf. Os
2; Is 1,21-26; 5,1-7; 49; 54; 62,1-9; Ez 16; Br 4-5). O vinho é símbolo da
alegria messiânica, símbolo também do Espírito Santo, que embriaga e alegra o
coração (cf. At 2,15s; Ef 5,18). Considerando tudo isso, é como se a Mãe de
Jesus olhasse toda a antiga aliança, todo o povo de Israel, a quem o Senhor
desposou pela aliança do Sinal, e dissesse: “Eles não têm mais vinho”
(v. 3). Isto é, falta-lhes o Espírito; a antiga aliança esgotou-se pelas
infidelidades de Israel: “Onde está Aquele que os fez subir do mar, o
Pastor do seu rebanho? Onde está Aquele que pôs o seu Espírito santo no seio do
povo? Há muito que somos um povo sobre o qual não exerces o teu domínio, sobre
o qual não se invoca o teu nome” (Is 63,11b.19; cf. Ez 37,1-14). Deus
tinha prometido que, com a vinda do Messias (= Ungido pelo Espírito), seria
selada uma nova aliança com Israel e o povo de Deus teria uma nova efusão do
Espírito (cf. Jl 3,1-5). Pois bem, em sentido profundo, é este vinho que falta
a Israel, o vinho bom e novo do Espírito, que somente o Messias pode
trazer.
(4) A resposta de Jesus à Mãe deve ser
bem compreendida:
(a) Primeiramente, olhando do ponto de vista da cena, simplesmente, é
necessário observar que Jesus se coloca num plano diverso do de Maria: ela fala
de algo prático, imediato, concreto; ele responde pensando num sentido
figurado, teológico: a “hora”, a qual se refere é a hora da morte e
ressurreição, hora da glória, que somente aparecerá de modo claro ao final, na
Páscoa, “hora de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1s), quando,
então, ele mesmo dirá: “Pai, chegou a hora. Glorifica teu Filho...” (Jo
17,1s). Nesta hora, a Mãe de Jesus estará novamente presente (cf. Jo
19,25ss).
(b) A resposta de Jesus não é um desacato. “Que queres de mim. Mulher?” quer
simplesmente marcar a distância de Jesus em relação à cena familiar: aqui não
entram os direitos “naturais” de mãe. A hora dele somente pode ser determinada
pelo Pai! O apelativo Mulher é importante. Trata-se da Mulher do Gênesis (cf.
3,15s), da cruz (cf. Jo 19,25ss) e do Apocalipse (cf. 12,1ss). Este Mulher
simboliza a Filha de Sião (cf. Is 12,6; 54,1; Sf 5,14; Zc 2,14), imagem da
Igreja, que será desposada na ressurreição (cf. Ap 19,7s), quando Jesus, o
noivo, revelar sua glória e desposar sua Igreja (cf. Ef 5,32s.25; Mt 22,1-14;
25,1-13; 2Cor 11,1-4; Ap 12, 21,2). A Virgem Maria, na nova aliança, tem um
lugar determinado por Deus. Ela é a Mulher, Nova Eva, imagem da Igreja, Mãe do
Senhor a quem Jesus entregará seu discípulo amado e a quem o discípulo amado
deverá sempre levar para sua casa. Nesta cena de Caná, ela é a Igreja-Noiva, a
Mulher, esposa do Cordeiro, do Noivo que vem desposar a noiva, Israel-Igreja
(cf. Jo 3,29)! É por isso que o Evangelista não diz o nome dos noivos. As
núpcias são as núpcias pascais, o Esposo é o Cristo, a Esposa é a
Mulher-Igreja, representada por Maria.
(5) Tanto a resposta de Jesus não é
grosseira nem uma recriminação, que a Mãe vai adiante: “Fazei tudo o
que ele vos disser” (v. 5). É uma palavra de profundo sentido
espiritual, que ainda hoje ecoa aos ouvidos e no coração da Igreja. É tudo
quanto a Virgem tem para dizer aos discípulos do seu Filho!
(6) Importante também é a referência às
talhas de pedra:
(a) elas serviam para os ritos de purificação da religião judaica. Vão perder a
utilidade pois, com a ressurreição, a nova aliança chegará e os velhos ritos do
Antigo Testamento estarão superados. Elas transbordarão não mais a água da Lei
de Moisés, mas o vinho novo do Espírito Santo, dom pascal do Ressuscitado à sua
Igreja.
(b) as talhas contêm “duas a três medidas”. São cerca de quarenta
litros para cada uma. É um exagero. João aqui quer aludir ao dom do Espírito,
derramado em abundância: “ele dá o Espírito sem medida” (Jo 3,34). É
este o “bom vinho” (v. 10) , vinho do Espírito, que Deus
guardou para o final da festa, para a nova aliança! Esta idéia da abundância do
Espírito, que é sem medida, aparece também no fato de encherem as talhas“até
à borda” (v. 7).
(7) Assim, a água da antiga Lei dá
lugar ao Espírito da nova aliança. O Espírito é a nova lei, lei do Amor,
derramado no nosso coração (cf. Rm 5,5). Tudo como fruto das núpcias do
Cordeiro, quando sua esposa, a Igreja, enfeitou-se de puro linho (cf. Ap
19,7s).
(8) E a conclusão, que poderíamos
exprimir deste modo: “Ao terceiro dia, houve núpcias... Jesus manifestou a
sua glória e os seus discípulos creram nele”. Note-se que a alusão à
ressurreição é claríssima.
São estes alguns dos pontos a serem salientados nesta belíssima passagem, que
João descreve de modo tão teologicamente rico.
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